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O que aprendi com meu vitiligo
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Por anos, minhas manchas me trouxeram dor e sofrimento. Mas hoje o vitiligo é uma ferramenta para ajudar quem também passa por isso

Numa segunda-feira qualquer, há quase 12 anos, acordei e fui tomar banho, ainda sonolenta. Depois que saí da ducha, fiquei em frente ao espelho, como fazia todas as manhãs, e aí dei de cara com ela: a primeira mancha branca do meu vitiligo, no canto direito da boca. Desesperada, saí do banheiro e fui às pressas mostrar para a minha mãe. Ela tentou me acalmar dizendo que aquilo não era nada, apenas um machucado.

Fui para o trabalho com o coração angustiado, rezando para que ela estivesse certa. Mas, no fundo, tinha a triste certeza de que o pior havia me acontecido. Eu estava com 18 anos e um dos meus maiores medos e preconceitos sempre esteve relacionado a ter essa doença. Lembro de quando eu era criança, de ver o dono de um bar perto de casa que tinha vitiligo. Olhar para as mãos dele me causava repulsa, como se elas estivessem sempre meio sujas. Um primo do meu pai, um homem muito bonito, também tinha manchas do vitiligo no rosto, e sempre que o encontrava, eu pensava: “Coitado, ele era tão bonito e isso aconteceu com ele”. Minha mãe também demonstrava pena ao ver pessoas com essa condição de pele.

Para a pele e para a mente

Bem, naquele mesmo dia eu marquei uma consulta com um dermatologista para os próximos dias. Depois de me olhar com atenção e sem demonstrar dúvida, o médico disse: “Você tem vitiligo”. Assim, na lata. “Não era possível. Meu pesadelo era real! Como seria a minha vida dali pra frente?!”, pensei. Arregalei os olhos e comecei a chorar na consulta. Eu me perguntava por que aquilo estava acontecendo comigo, achava que ninguém mais iria me amar. O que me assustava muito era não saber o que iria acontecer. Não saber quando iria acordar e encontrar uma mancha nova no meu rosto.

Chorei por meses. A cada mancha que surgia e medicamento sem efeito que eu tomava, eu me odiava mais. Ficava pensando qual seriam as próximas lesões, e como eu iria me livrar delas. Perder o controle do meu corpo me deu muito medo. Os médicos diziam que as manchas surgiam porque eu estava estressada. E aí eu me sentia culpada por isso. Uma vez, um médico disse que não tinha como não se estressar na vida, e que por isso seria bom que eu tomasse antidepressivos. Mas eu nunca tomei. Eu pensava que eles só serviriam para dopar a minha situação. A mesma cena se repetiu em muitos consultórios, o discurso era o mesmo: “Não tem cura, vamos testar algumas coisas. Eu vou dar antidepressivo e essa maquiagem pra esconder”. Use uma maquiagem. Para a pele e para a mente.

Ajudas em vão sobre o vitiligo

Durante esses anos eu me machuquei muito. Tanto emocionalmente, por não aceitar a doença, quanto por causa dos tratamentos que fiz. Tomei muitas medicações, passei cremes e também tentei o laser, que era muito agressivo. Na boca, causava bolhas e feridas. Quando elas finalmente começavam a cicatrizar, já era chegada a data da nova sessão. Fiz isso por um ano. Não sei se ajudou ou se piorou.

O olhar doce sobre o vitiligo

Mas nesse longo período eu também recebi influência positiva: muitas pessoas importantes passaram por mim com um olhar doce. Um deles foi o Fernando, um moço que conheci em um show, em 2010.

Um dia, nos adicionamos no Facebook e fomos tomar um suco. Quando mostrei para ele as minhas manchas, ele disse: “Nossa, eu acho isso lindo! Eu vi uma vez uma moça que tinha na região dos olhos e gostei”. Desde o primeiro dia em que eu soube do meu vitiligo e até poucos anos atrás, eu sempre dava um jeito de já contar sobre minha doença para a pessoa que eu estava conhecendo. Era quase como “Oi, meu nome é Bruna, e eu tenho vitiligo”. Era como se eu quisesse avisar logo para que a pessoa decidisse me aceitar ou não.

Conforme as manchas foram aumentando, eu também passei a esconder as mãos. Então foi algo encantador quando esse amigo me disse que achava minhas manchas bonitas. Ele foi a primeira pessoa que eu senti ter uma aceitação real. Lembro de chegar em casa e contar para a minha mãe que eu tinha conhecido um menino meio louco, que havia gostado do meu vitiligo. Até então, eu só sentia muito preconceito. No meu bairro, entre meus amigos. Sinto que meus pais também não sabiam como lidar. Eu via o esforço da minha mãe em me falar que aquilo não era nada, mas nunca me convencera de verdade.

Depois disso, gradualmente eu passei a olhar as minhas manchas de outro jeito. Um dia fui ao parque com uma amiga para fazermos algumas fotos e contei a ela que o Fernando via desenhos no meu vitiligo. Nessa hora, ela olhou para uma jabuticabeira e disse: “Olha, essa árvore é manchada como você”. Fiquei surpresa: nunca tinha pensado que havia amigos na natureza como eu.

A escolha das minhas marcas

tatuagem e vitiligo

Certo dia perguntei para minha mãe como ela via as manchas e ela disse que eram como nuvens, que a gente olha e fica procurando desenhos. Reparei que até cachorros têm manchas. E descobri que os manequins nas vitrines quase sempre têm vitiligo! Mas ainda havia muito incômodo dentro de mim. Ainda procurava curas e continuava passando cremes. Em 2013, fiz uma viagem para o México, onde tomei muito sol. E voltei muito triste para casa, com a pele mais marcada por causa da exposição. Sinto que, quando estou mal, meu estado emocional realça as manchas. As pessoas até percebem mais meu vitiligo.

Por muito tempo vivi como um homem de vidro, alguém que não podia fazer nada com medo de novas manchas – afinal, se eu sofrer um acidente ou lesionar a pele, ali pode surgir uma mancha. No meu caso, descobri que a maioria delas vem de roupas que criam atrito com a minha pele. Hoje eu faço kung fu. E sei que não posso ficar batendo em alguma coisa em todas as aulas. Tatuagem também era algo proibido. Mas eu decidi fazer. Pensei nelas como uma forma de escolher minhas marcas, de não me esconder. Então eu tenho uma mancha do vitiligo na barriga, mas também tenho uma tatuagem na costela, sabe?

Uma nova esperança para o vitiligo

Quando eu vou a um lugar novo, sempre tem alguém que me para e fala de algum tratamento que deu certo. É o  amigo do colega que foi para Cuba e se curou, alguém que fez um tratamento indiano e sarou. Eu percebo que as pessoas se incomodam com meu vitiligo e por isso falam de alguma solução. Hoje, quando eu agradeço e digo que estou bem com as manchas, elas ficam surpresas. É como se fosse um absurdo eu aceitar o que sou.

As coisas começaram a mudar depois de um dia, em 2015, em que minha mãe chegou em casa com um cartãozinho. Era de uma médica que fazia um tratamento novo, que consistia em um enxerto de pele saudável das costas nas áreas onde eu tinha vitiligo, como nas mãos. Marquei a consulta, e a doutora foi muito atenciosa. Foi a primeira a me explicar o que era o vitiligo, onde o corpo entende que a melanina da pele é um vilão e aí passa a atacá-la, até que ela não consegue mais sobreviver e a pele perde o pigmento. Decidi que faria o tratamento e naquele dia ela tirou um pequeno pedacinho da minha pele, que eu deveria levar para fazer uma biópsia.

Eu queria mesmo aquilo?

Mas depois comecei a me perguntar se eu queria mesmo passar por algo tão doloroso novamente. Bolinha por bolinha de tecido, tirado das costas e colocado nas mãos, então recobertas com plástico e completamente imobilizadas, sem um mínimo esforço – do contrário, o enxerto cairia.

Comecei a olhar para as minhas costas e para minhas mãos, duas áreas com possíveis cicatrizes futuras. Lembrei de tantos outros métodos invasivos que só me trouxeram mais dor. Conversei com meu pai e desisti do novo tratamento. Nunca nem busquei os exames da biópsia no laboratório. Fiz uma postagem no Facebook, e nela eu dizia que não iria mais me machucar por isso, e recebi muito apoio. Ali decidi juntar as fotos que tinha, e pensei que talvez um blog pudesse ajudar. E uma amiga, a Letícia, disse que eu poderia produzir um conteúdo que fizesse bem a outras pessoas, e se dispôs a revisar os meus textos.

O meu corpo está em paz

vitiligo

A partir daquela experiência terrível eu percebi que o que eu tinha era como uma ferramenta para ajudar os outros. Todo esse processo doloroso de aceitação poderia servir para cortar o caminho de alguém que também passa por  isso. Um outro amigo, o Ricardo, me ajudou a criar o blog. Eu escrevi um texto, a Letícia revisou, e logo publiquei.

No Minha Segunda Pele, eu relato como tem sido todo esse processo, quais procedimentos eu fiz, o que eu aprendi. Em poucos meses passaram a chegar comentários de pessoas que se identificavam com a minha história. Dia desses eu recebi uma mensagem de uma mãe cuja filha de 12 anos recebera o diagnóstico havia um ano. Ela dizia que ler sobre minha aceitação dava forças para ajudar a garota. É muito bom saber disso, era algo que eu queria ter lido quando aconteceu comigo. Porque, por não ser uma doença tão comum, ninguém fala muito sobre isso, e, quando fala, nunca é sobre se aceitar. Quando o vitiligo apareceu, eu pensava que era um castigo de Deus, que fez isso comigo por eu ser vaidosa. Mas o blog ajudou a virar essa chavinha dentro de mim.

Minha pele desenhada é um presente

Aos poucos aprendi a me aceitar e me amar. Então também não procuro mais a aceitação das outras pessoas. Se eu conhecer um cara que não queira ficar comigo por causa do meu vitiligo, ótimo, não é a pessoa certa mesmo. Foi um passo importante e libertador. Então o que eu faço agora vem desse desejo de que todos que tenham vitiligo também se amem. Não trato mais a doença como um invasor que veio me castigar; é meu, faz parte de mim, não é algo externo. Sou sensível e delicada, e minha pele também é, então ela também fala sobre mim.

Se um dia surgir um tratamento que de fato traga a cura, não vou dizer que talvez eu não tente. Mas entendi que aceitar a minha condição tem a ver com não deixar que isso domine a minha vida agora, e não permitir que eu me machuque. Hoje meu corpo está em paz. Aprendi que é possível trocar a nossa paisagem mental, não alimentar com tanta energia ruim a nossa condição. Vejo minha doença como uma missão, eu até gosto de ter vitiligo. Minha pele desenhada é como um presente.

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