A sociedade contemporânea muitas vezes evita lidar abertamente com a inevitabilidade da morte, relegando-a a um incômodo tabu distante. Disposta a colocar luz sobre o assunto, a pesquisadora, professora e advogada brasileira Cynthia Araújo acaba de lançar o livro “A vida afinal – Conversas difíceis demais para se ter em voz alta”*.
Colunista do blog Morte sem Tabu, a escritora propõe redimensionar a ideia de viver a partir da perspectiva da proximidade com a morte. Sua abordagem se fundamenta na análise de relatos de pacientes de câncer em estado avançado e trabalha o impacto de questões como autonomia e acesso à informação nas escolhas feitas por eles.
Em entrevista à Vida Simples, Cynthia fala sobre o que a motivou a escrever o livro e como encarar a morte de maneira mais natural e serena:
O que a motivou escrever o livro?
Minha principal motivação era que qualquer pessoa pudesse entender assuntos que normalmente não são escritos em linguagem simples a partir desse livro. Quando eu comecei a ver estudos médicos que demonstravam que grande parte dos pacientes com câncer avançado fazem muitos tratamentos com pouco ou nenhum benefício comprovado, porque esperam deles a cura ou a longevidade, senti que o assunto precisava ser debatido socialmente. Quis contribuir de alguma forma para a democratização do acesso a esses dados, que geralmente ficam muito limitados ao ambiente acadêmico; e quando saem dele, têm uma linguagem pouco acessível às pessoas comuns. O que eu mais quero é que essas pessoas se sintam convidadas a entender melhor o que acontece com elas ou seus entes queridos, a perguntar aos médicos o que de fato podem esperar de uma tecnologia em saúde antes de decidir se faz sentido, se os riscos e efeitos colaterais valem a pena dentro do que julgam mais importante.
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É possível encarar a morte sem tabu, com serenidade?
A tabuzificação da morte, como eu chamo, é um fenômeno recente. Até outro dia a gente tratava a morte com mais naturalidade, como a parte da vida que ela é. Velávamos os nossos mortos em casa, falávamos sobre eles, as crianças participavam. Então nós começamos a esconder o assunto, muito em razão das nossas altas expectativas com a medicina, que ajudou a erradicar ou diminuir drasticamente a incidência da maior parte das doenças que, um século atrás, eram as maiores causas de morte. Falar sobre morrer passou a ser proibido, até porque se imaginava que as tecnologias uma hora dariam conta de tudo. Mas não deram, não darão. Continuamos não conseguindo curar grande parte das doenças graves, como cânceres avançados. Há três anos e meio iniciamos uma pandemia que trouxe a morte para a superfície com toda a força, tirou a vida de pessoas jovens que se mostravam saudáveis até então, e não nos deixou sequer a chance de despedida.
Acredito que quando internalizamos a realidade de que morremos, vivemos melhor. A ideia de que o futuro é uma chance, não uma garantia, faz com que a gente dê mais valor ao presente, na medida das nossas possibilidades. Faz com que a gente dê mais valor à presença, porque a gente pode continuar aqui amanhã, mas talvez as nossas pessoas amadas não. Para mim, não há maior serenidade do que isso. Claro que não é uma decisão que se toma de uma só vez. É um processo. Mas realmente acho que ficar tentando escapar do assunto morte, como se isso pudesse impedir as pessoas de morrerem, como se isso pudesse nos impedir de morrer, traz qualquer coisa, menos paz.
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Quais casos de pacientes que você acompanhou e que considera mais emblemáticos? Poderia compartilhá-los conosco?
Acho que três casos foram os mais marcantes para mim. O primeiro foi o de uma mulher alemã bem idosa, que passou um bom tempo conversando comigo e reclamando de dores que estava sentindo, em razão de feridas no peito. Já estávamos conversando há uns 40 minutos quando seu médico apareceu. Quando ele disse que estava procurando por ela para avisar que naquele dia não poderia fazer a quimioterapia, porque a paciente não tinha condições clínicas de fazer, ela se desesperou. Foi difícil ver a mesma pessoa que até aquele momento me mostrava as chagas no peito e reclamava de dor dizer que estava bem sim, que não estava sentindo nada e que precisava fazer a quimioterapia, porque acreditava que, sem ela, iria morrer. Foi ali que entendi muita coisa.
Outra situação bem emblemática foi a de uma mulher brasileira do interior de Minas, por volta dos 50 anos, que estava acompanhada do marido e recebia quimioterapia no leito. Ela estava bem debilitada e eu me perguntava se a quimioterapia que estava recebendo fazia algum sentido. Eu me aproximei para falar sobre minha pesquisa, ver se ela concordava em participar. Ela ficou desconfortável, disse que não queria fazer exames. Eu disse que seria apenas uma conversa, que não tinha nada além de responder algumas perguntas. Aí ela respondeu: “Ah, sim, então participo sim, é porque eu aceitei fazer parte de uma pesquisa aí da minha médica e isso tá tirando meu sono, porque eu não quero ter que tirar a roupa na frente das pessoas, nós somos gente muito simples”. Falei que ela tinha o direito de desistir de participar de qualquer pesquisa a hora que quisesse; e que se isso a deixava incomodada, bastava explicar para a médica que não queria mais fazer parte. Ela disse que ficava sem graça, que não queria chatear a médica dela, que era uma pessoa muito legal. Foi um momento especialmente difícil para mim. Talvez aquela mulher estivesse nos seus últimos meses de vida e não só não entendia o seu mau prognóstico, como sua maior preocupação naquele momento eram os exames que não queria fazer para participar de uma pesquisa em que ela entrou certamente sem entender bem para quê.
Um último caso sobre o qual eu sempre falo é o de um homem alemão, também com cinquenta e poucos anos, que me disse que esperava viver até o Natal. Eu ainda processava essa informação quando ele, depois de pensar um pouco, corrigiu: “o Natal está longe; gostaria de ver minha neta nascer daqui a um mês”. Foi uma das únicas pessoas das quase 50 que entrevistei que demonstrou entender, de verdade, que sua vida estava chegando ao fim.
Poderia explicar “o direito à boa morte”? O que isso significa?
A ideia de boa morte tem muito a ver com a morte com dignidade, sem intervenções médicas fúteis e com o maior conforto possível a partir do controle de todos os sintomas físicos e emocionais de pacientes e de seu círculo afetivo. Estudos demonstram, por exemplo, que uma grande parte das pessoas, no mundo inteiro, gostaria de morrer em casa, mas a maioria morre em hospitais, muitas vezes em unidades de terapia intensiva, ligadas a diversos tubos que pouco podem fazer por elas, sozinhas. Mas a morte em si é um ponto no tempo. Por isso, eu gosto mais da ideia de “fim de vida digno”, que pode durar dias ou anos, até que o momento da boa morte realmente sobrevenha.
Qual o papel dos cuidados paliativos para um paciente terminal?
Os cuidados paliativos representam uma abordagem multiprofissional que é essencial para que pessoas com doenças ameaçadoras da vida tenham a melhor qualidade de vida possível apesar dessa doença, que pode ou não ser terminal. É uma forma de cuidar do ser humano que existe para além dessa doença, seja ela tratável ou não, curável ou não. O ideal é que os cuidados paliativos sejam iniciados precocemente, ou seja, logo que a pessoa descobre a doença que pode levá-la à morte e a levará, na maior parte dos casos. Mas, infelizmente, isso ainda é a exceção, não apenas no Brasil. Então, a maioria dos pacientes é referenciada para cuidados paliativos apenas na fase final da sua doença. Nesse estágio, uma parte dos cuidados paliativos chamada cuidados de fim de vida é extremamente importante não apenas para o controle de sintomas e para a boa morte de que falamos, mas para que as pessoas consigam eleger suas prioridades, algo que muitas vezes só conseguem fazer quando entendem que sua vida realmente está acabando. Para alguns, será realizar uma última viagem. Para outros, será um pedido de desculpas, uma reconciliação. Para outros, será o alívio do sofrimento espiritual.
Como acolher um paciente que está em cuidados paliativos? E como acolher a família?
Acho que, acima de tudo, as pessoas querem ser ouvidas. Elas não querem ser reduzidas a suas doenças, mas querem poder falar delas também. Temos que evitar suposições, cada um tem uma biografia única e os valores mais importantes das pessoas podem ser muito diferentes do que imaginamos. Há quem tenha muito medo de morrer e há quem tenha muito medo de não conseguir mais tomar banho sozinho. Há quem esteja mais preocupado sobre como seus filhos vão sobreviver do que com a morte em si. Há quem queira deixar um legado, realizar um sonho antes de partir. Por isso mesmo, os cuidados paliativos são essenciais, porque no centro deles estão as habilidades de comunicação, inclusive para o acolhimento da família. Não é incomum perceber que um paciente segue fazendo tratamentos não porque ainda acredita que eles terão algum benefício, mas por medo de decepcionar familiares, porque um filho, a esposa insiste. Todo o núcleo familiar precisa ser considerado quando um paciente enfrenta uma doença grave e ser integrado nos planos de cuidados.
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