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Um tour pelos sabores da Serra da Mantiqueira
Quem visita Campos do Jordão, uma das principais cidades da Serra da Mantiqueira, se encanta com o cenário e a arquitetura alpina. Mas é preciso ir além e entender que a região esconde uma cultura caipira na sua raiz (Foto: iStock)
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Como é acordar com a visão de um mar de nuvens na janela e raios de sol filtrados por ra­mos de araucárias? E estender a vista num ho­rizonte de luz rosada onde não mais se distin­gue o que é céu e o que é montanha?

Eu não ti­nha ideia desse universo de possibilidades ao me mudar há dois anos para Campos do Jordão (SP). É a cidade mais alta do Brasil, encravada na Serra da Mantiqueira, a quase 1700 metros de altitude.

Sempre amei as cadeias montanhosas. Já vivi nos Alpes, mas não pensava em me des­lumbrar com tão belas paisagens ao viajar pelas diversas regiões dessa serra que se estende en­tre as divisas de São Paulo, Minas e Rio. É como conhecer um inesperado país feito de maciços de pedras, cachoeiras e matas.

E tão surpreendente como as vistas que se abrem a cada curva da estrada é a nova cultu­ra que nasce por lá. Há um esforço para recupe­rar antigas receitas de cozinha da região e des­cobrir os sabores de verduras e frutas cujo uso foi abandonado.

O clima caipira orgânico da Serra da Mantiqueira

É estimulado também um cui­dado extremo na produção de culturas orgâ­nicas, seja de café, vinhas ou frutas. E existe, ainda, um esforço para que as pessoas não se esqueçam que na Serra da Mantiqueira a cultu­ra original é caipira, da roça mesmo. Ainda que as cidades de Campos do Jordão e Monte Verde (MG) tenham centros turísticos que as fazem as­semelhar-se a vilarejos alpinos.

Mas, no geral, o povo simples da montanha fala mesmo é com o r mineiro (porrrrta), e usa palavras como vre­meio (vermelho) e tremoso (teimoso).

Mais do que fondue, essa gente gosta de um bom leitão pururuca, café com broa de milho e mandioquinha frita com linguiça feita em ca­sa.

Só que na nova, e igualmente deliciosa, gas­tronomia local, o angu pode ganhar a compa­nhia do cogumelo shitake produzido na região, ou o torresminho crocante o acompanhamen­to de uma cerveja feita com limão-cravo e gen­gibre de uma microcervejaria. Mas essa é uma outra história, que faz parte do próximo bloco.

Que tal turistar pelas fazendas da região?

Um dos grandes passeios da chamada Nova Mantiqueira é visitar as propriedades rurais. É uma delícia passar umas horas em cada fazen­da, adquirir seus produtos ou saboreá-los em seus restaurantes.

Em algumas delas, como a Fazenda Água da Capoeira, por exemplo, na região de Santo Antônio do Pinhal (SP), é possível encher uma sacola com frutas colhi­das no pé ou escolher verduras na horta orgâ­nica.

Em outras pequenas propriedades, pode­-se visitar plantações de flores comestíveis cul­tivadas por meio de hidroponia e sem uso de defensivos agrícolas, como na Gastro Flowers, em Campos do Jordão.

Uma das propriedades que vale a pena visi­tar e que abre suas portas aos sábados é a San­ta Terezinha, que tem mais de um século e fica em São Bento do Sapucaí (SP).

O café de lá, cuja produção é vendida quase totalmente para o ex­terior, já ganhou a primeira colocação no prêmio mais prestigiado da área no Brasil, o Cup of Ex­cellence.

Os pés de café são plantados à sombra de árvores maiores como a taiuveira e, por isso, sua produção é conhecida como”café sombre­ado”, um sistema que confere bastante robus­tez e saúde à planta.

Clima, solo, altitude, for­ma de colheita (só os grãos maduros são reti­rados) e o trabalho realizado no terreiro são os itens que determinam um bom café. “Produzo 300 sacas por ano de diferentes tipos de café, penso em chegar a 600. Mas o mais importan­te é que a produção seja de alta qualidade”, diz o engenheiro agrônomo e proprietário Paulo Sér­gio de Almeida, que tem clientes em países co­mo Japão e Estados Unidos. Um pacote de 1 kg do café Fazenda Santa Terezinha custa 49 reais.

Saúde debilitada por agrotóxico motivou produção orgânica

Serra da Mantiqueira Entre as boas descobertas estão algumas fazendas antigas com produção variada — do cogumelo shitake a flores, cafés premiados e cervejas artesanais. Melhor, muitas delas abrem as portas aos visitantes (Foto: Unsplash)

Há um forte motivo para que a produção da Santa Terezinha seja totalmente orgânica. Há 30 anos, Paulo fez um transplante de rim. A provável causa: intoxicação involuntária por agrotóxicos. “Prometi a mim mesmo nunca mais envenenar ninguém com o seu uso”, diz ele.

Também seu filho, Fabrício, dono de uma microcervejaria, instalada dentro da Santa Te­rezinha, a ZalaZ, não usa aditivos químicos na bebida, que pode levar ingredientes como café, amora, pitanga, chá de cáscara (casca e polpa de café), limão-cravo ou maracujá.

Outra fazenda que vale a pena conhecer é o Viveiro Frutopia, e o restaurante Entre Vilas, em São Bento do Sapucaí. Quando decidiu fazer vinhos de altitude de qualidade com uvas euro­peias, cultivar frutas exóticas delicadas, como amoras e framboesas, ou, mais ainda, plantar lúpulo para a produção de cerveja, não houve quem não chamasse Rodrigo Veraldi de malu­co.

Por isso, ele não teve dúvida em batizar sua propriedade de Frutopia, uma mistura da pala­vra “fruta” com “utopia” — e o sonho deu cer­to. Uma cobertura de plástico salva suas videiras da chuva e ele já está na terceira safra de vinhos.

Azeitonas em plena Serra da Mantiqueira

O casal de proprietários da Fazenda Oliq também resolveu ousar e mudar de vida. Os dois compraram terras para plantar oliveiras e colher azeitonas, que hoje resultam em azeites saboro­sos.

No armazém local, além dos vários azeites experimentados num tipo de pão de sabor su­ave, a fougasse (o parente francês da focaccia), destacam-se ainda os doces feitos com frutas de altitude, tais como a fragaia, japoca, grumixama, além da uvaia e do cambuci. Ainda dá es­paço para salivar mais? Então vamos em frente.

Consciência que gera qualidade

Sabores da Mantiqueira é o título de um proje­to realizado por três professores da Faculdade de Gastronomia do Senac de Campos do Jordão para estimular os alunos a conhecer melhor os produtos da Serra e desafiá-los a usar esses in­gredientes em novas receitas.

Para isso é feito um levantamento detalhado dos produtos lo­cais de acordo com quatro critérios: produção orgânica, relevância culinária, identidade local e preocupação com o meio ambiente.

O conte­údo resultante das pesquisas serviu para a re­alização de um documentário e um livro. Mas, antes de irem com os alunos para conhecer a re­gião, os próprios professores foram desbravar as montanhas e vales ao longo do Rio Sapucaí­-Mirim, o mais importante da Serra da Mantiqueira. Foi uma surpresa.

“Já estamos fazendo o levanta­mento há mais de três meses numa determi­nada microrregião, tarefa que a gente pensava em liquidar em poucos dias, e ainda nem che­gamos na metade de tudo o que é produzido por lá”, conta Vitor Pompeu, professor do Senac e um dos sócios do projeto.

Qualidade que garante o sucesso

Serra da Mantiqueira Para conhecer a Serra da Mantiqueira, na sua essência, é preciso conversar com as pessoas e provar os frutos de sua terra, das uvas às frutas exóticas de sabor delicado e, algumas vezes, excêntrico (Foto: iStock)

Já Ricardo Barbosa, professor de história da alimentação, hoje mais dedicado ao estudo do ciclo econômico e sustentabilidade da produ­ção, ensina aos alunos como a qualidade pode se transformar num diferencial redentor para os produtos da região.

“Posso ir com eles a uma plantação de um produtor de morangos orgâni­cos, por exemplo, e mostrar o trabalho meticu­loso que ele tem no seu cultivo. Assim é mais fá­cil entenderem a razão de o preço final ser um pouco mais alto”, diz ele.

O resultado dessa ação tão simples? Plantar nos futuros chefs o gosto pelo uso dos produtos locais e, dessa maneira, alimentar um ciclo virtuoso de qualidade, fres­cor e saúde.

“Os agricultores só permanecem na região se os seus produtos têm saída. E os chefs só podem escolher utilizá-los se os conhecerem e oferecerem a seus clientes”, ressalta Ricardo.

O desafio do terceiro integrante do projeto, o professor e chef Vitor Rabelo, é trazer esse co­nhecimento para a prática, e desafiar os alunos a inventar pratos criativos com os ingredientes tradicionais da região.

Tem dado certo também. Eles elaboram pratos da entrada à sobremesa que depois são avaliados pelos professores. E a moçada simplesmente ama esse desafio.

Os restaurantes da Serra da Mantiqueira

A fórmula tradição mais criatividade é usada hoje por muitos chefs da Serra da Mantiqueira. Cito só alguns, porque a lista é grande. Por exemplo, Mônica Rangel, que há 20 anos comanda o Gosto com Gosto, em Visconde de Mauá (RJ), e que ela­bora uma cozinha de tradição mineira, como o brasileirinho, sobremesa feita com limão e do­ce de leite.

Ou a chef Anouk Vasconcelos Rosa, que oferece trutas e outras receitas com frutas e legumes de cada estação, do pinhão à alcacho­fra, do shitake às frutas vermelhas.

É uma cozi­nha com um delicado toque francês (os pais de Anouk vieram da França) que pode ser aprecia­da num restaurante à beira de um riacho, o Don­na Pinha, em Santo Antônio do Pinhal.

Criatividade e tradição também valem pa­ra o restaurante Dona Chica, instalado no Hor­to Florestal de Campos do Jordão, comandado pelo chef Anderson Cesar Oliveira.

Jordanense da gema, ele é responsável pela volta de frutos típicos da região em diversas preparações, como o tomate de árvore, que conheceu na infância. “Fui de porta em porta até conseguir uma mu­da. As pessoas não o plantavam mais por aqui.”

O Lá na Roça, em São Bento do Sapucaí, marcado pela hospitalidade, comida saborosa e uma bela paisagem, também pode fazer par­te dessa lista. Assim como o Sauá, em Gonçal­ves (MG), que tem um belo jardim e cardápio assinado pelo chefe professor Vitor Pompeu.

Mas, se você quiser mesmo o máximo, e se seu bolso permitir, visite o Mina, restaurante do Botanique Hotel & Spa, em Campos do Jordão. Lá quem brilha é o chef Gabriel Broide, que dei­xou para trás prêmios e elogios de críticos pau­listas para ter uma vida pacata na Mantiqueira. Uma sugestão: prove as vieiras em calda de pi­nhão. E depois me conte.

Sobretudo, experiências

Quem não tiver tempo para visitar fazendas ou restaurantes pode comprar os produtos locais em entrepostos. Como o Café do Bosque, den­tro do Bosque do Silêncio, em Campos do Jor­dão.

O dono, Marco Ayres, faz questão de ofe­recer amostras dos principais itens da loja pa­ra o cliente saborear. Ali é possível comprar mel de flores de café, uma deliciosa geleia de laranja, queijos ou cervejas artesanais.

Mas, além de ex­perimentar gostosuras e se deliciar com a paisa­gem, quando for para a Serra da Mantiqueira faça o pos­sível para interagir com as pessoas de lá.

Foi as­sim que conheci Tadaki Yamada, um mestre de 77 anos com unhas sujas de terra pelo trabalho como agricultor. O encontrei num lugar simples, mas de beleza incomparável, o Café com Orquí­dea, em Santo Antônio do Pinhal.

O espaço dos jardins e varanda foi construído por ele, com bambus entrecruzados. No começo, ele estava tímido. Mas, em minutos, já havia me ensinado a fazer uma sandália de palha.

E, ao lado de um café e uma fatia de banoffe, torta feita com ba­nana, caramelo e chantilly, ele me contou entre risadas e lágrimas sua trajetória de vida.

Que é um pouco a sua história, mas também muito da história da gente de fibra da Serra da Mantiqueira. Viver experiências como essa não tem preço.

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LIANE ALVES mora em Campos do Jordão com o ma­rido, Antônio. Conheça mais sobre os lugares citados no texto no site vivernamantiqueira.com.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 194 da Vida Simples

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