A sensação de muitas pessoas é de que chegamos no fim da festa. Previsões não tão animadoras, um cenário climático desafiador, além de inúmeras pesquisas científicas que comprovam o que já sentimos na pele.
No meio desse balaio, a saúde mental não sai ilesa. O pessimismo climático já não se esconde e você provavelmente deve conhecer alguém que pensa: “não tem mais jeito, agora é só esperar”.
Acreditar em um futuro possível no meio de uma crise climática é desafiador e explicaremos o porquê, mas sem deixar de apontar como driblar essa melancolia.
O mundo já não é mais o mesmo. E dados não faltam
Mais de 6 bilhões de pessoas foram expostas a temperaturas nunca vistas nos últimos 29 anos, segundo dados de um relatório produzido pelas organizações World Weather Attribution, Climate Central e Centro Climático da Cruz Vermelha.
Pela primeira vez na história, o ciclo da água está desregulado e pode levar a uma crise hídrica planetária, de acordo com a Comissão Global sobre a Economia da Água.
O serviço de mudanças climáticas Copernicus afirmou que 2023 foi o ano mais quente da história desde 1850.
Estar exposto a tantas previsões negativas é, no mínimo, desanimador. E tem impulsionado um novo fenômeno: a ecoansiedade.
Um aperto no peito, pessimismo, desânimo e um medo constante com o futuro. A impotência de não ter como resolver a situação torna as sensações ainda mais intensas.
A saída para muitas pessoas é se afastar de tudo isso. Alienação. No seu significado mais usual no senso comum, seria, neste caso, buscar não se inteirar sobre o assunto para evitar mais sofrimento.
A saúde mental na crise climática
Olhar para todo o cenário climático, político, econômico e social é difícil. Não tem como não ser afetado, ainda que muitas pessoas neguem.
O primeiro passo para se descontaminar do desânimo causado pela sensação de impotência é ter consciência de que a crise climática vai perpassar a vida de cada um.
“Temos que reconhecer que esse cenário é sombrio para que a gente consiga ter estratégias para lidar com ele. Entretanto, negar esse cenário não é uma possibilidade”, explica a psicóloga Andreína Moura.
Diferente de outros períodos de crise, como pós-guerras, não há um vislumbre de que as coisas podem melhorar. “A gente está vivendo num momento que, de fato, quando olhamos para o futuro, parece ser de pouca possibilidade, de uma vivência positiva e saudável”, diz a especialista, que é doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para ela, os profissionais de saúde mental precisam entender que sinais e sintomas característicos desse momento serão mais comuns na clínica.
O pessimismo é uma defesa
O psicanalista Guilherme Facci lembra que a população tende sempre a achar que o tempo atual é sempre o mais difícil.
“Tendemos a fazer projeções sombrias para o futuro, porque o nosso registro imaginário de fato funciona assim: nostálgico em relação ao passado, e pessimista em relação ao futuro”, diz o especialista, que comanda o podcast A Loucura Nossa de Cada Dia.
“Talvez uma boa reflexão seja: quando tivemos tempos tranquilos na história humana?”, questiona.
Facci lembra que o pessimismo é uma questão de defesa e autopreservação evolutiva do ser humano. Afinal, era bom para os nossos ancestrais pensarem que o dia seguinte nunca estava garantido.
Sem esse senso de urgência com o amanhã, facilmente os antepassados ficariam desprovidos de alimento. “Ou seja, um certo pessimismo não é uma característica tão ruim assim”, diz. Isso porque o sentimento nos impulsiona a agir no sentido contrário.
Há uma tendência de processar experiências negativas com uma intensidade maior do que as positivas. Bom, basta ver o noticiário e entender que as catástrofes e matérias negativas, tendenciosas para o sensacionalismo, atraem muita audiência.
O psicanalista explica que quando há um “não saber”, o imaginário cria sempre o pior cenário possível, que nos prepara para uma situação de perigo.
“Do ponto de vista psico-antropológico, o pessimismo era como um mecanismo de defesa que nos permitia nos prepararmos para o pior perigo possível”, comenta.
Tratar uma pessoa pessimista na clínica não passa por um convencimento racional, mas sim pela possibilidade de integrar traumas à história de vida.
“Mesmo diante de ‘fatos da realidade’, como um furacão, terremoto ou uma tragédia climática, cada um de nós responde de maneira ‘única’ e ‘diferente’ diante do mesmo acontecimento”,
destaca Guilherme.
Como ter saúde mental na crise climática
É difícil encontrar respostas para um fenômeno em andamento. Hoje, no entanto, há diferentes estratégias para reduzir os efeitos da ansiedade climática na saúde mental.
A primeira delas, sugere Andreína Moura, é filtrar as informações que chegam até você.
Não dá para ficar o dia inteiro acompanhando notícias e estudos sobre como o planeta está pior. Diferente de se alienar e fingir que a situação não existe, a estratégia consiste em delimitar os conteúdos que serão consumidos.
Rodear-se de boas conexões e criar um vínculo comunitário é outra estratégia fundamental, de acordo com a especialista.
A sensação de solidão que acompanha muitas pessoas deságua, enfim, em uma desconexão com o planeta. “Se eu não tenho relacionamentos com pessoas com as quais me identifico, como vou querer lutar por um amanhã melhor? Se eu me sinto só e as coisas não têm mais sentido, talvez seja mais difícil ter essa noção de que o futuro é possível”, diz a psicóloga.
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Saberes indígenas e ancestrais no combate à crise climática
As apostas da pesquisadora focam na importância da comunidade e da coletividade para enfrentar momentos difíceis como o que vivemos.
“Quando a gente sente que está em coletivo, em comunidade, os problemas têm soluções que a gente não encontrou sozinho. Isso porque pensamos com várias cabeças, e passamos por eles de uma maneira mais tranquila”, defende.
Ela propõe ainda um resgate de valores indígenas e afrocentrados que apontam novos caminhos. Inspirar-se em pensadores como Ailton Krenak e Antônio Bispo dos Santos, que defendem uma relação respeitosa com a natureza, os recursos naturais e o planeta.
É o que também propõe o projeto Jacarandá – Sonhar em rede. A iniciativa visa criar uma rede de apoio para enfrentar as mudanças climáticas por meio da coleta de relatos de sonhos sobre o clima e seus impactos socioambientais. Foi idealizada pela pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Mariana Leal de Barros
Os sonhos, que são o elemento central do projeto, têm uma dimensão importante em diferentes cosmovisões indígenas, como nas nações indígenas Yanomami, que ocupam territórios de floresta sobretudo em Roraima, norte do Brasil.
Iniciado em dezembro de 2023, o projeto recebe depoimentos via formulário online pelo WhatsApp e incentiva a participação de crianças e adolescentes com relatos ou desenhos enviados pelos responsáveis.
O formulário ficará aberto durante todo o ano de 2024, período em que alguns deles serão compartilhados anonimamente.
O acervo é um desdobramento da pesquisa de pós-doutorado de Mariana, realizada no núcleo de Sustentabilidade do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em parceria com o Laboratório de Etnopsicologia e o Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras (CERNE) da USP.
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A positividade tóxica não vai resolver
Para o psicanalista Guilherme Facci, não adianta pedir para “ver o lado bom das coisas” ou focar na máxima da gratidão, um conceito que foi esvaziado e não nos ajuda a progredir.
Dizer isso para alguém que acabou de perder um parente ou amigo em uma catástrofe climática, por exemplo, vai ser inútil. “Essa marca não se apaga. E a única saída possível é ver onde a elaboração do luto pode nos levar”, orienta.
Segundo o especialista, que coordena o Grupo de pesquisa Estilo e Formalização – Psicanálise e Lógica, é preciso se abastecer de uma escuta ativa, e vice-versa.
“A melhor maneira de lidar não apenas com a ansiedade climática, mas com a ansiedade de forma ampla, é poder falar com alguém que consiga nos escutar de maneira íntegra, para que possamos nos apropriar de nosso discurso e saber um pouco mais sobre quais marcas respondemos”.
Com isso, cada um pode assumir uma nova posição diante do próprio discurso, que pode até ser pessimista ou cético, mas nunca cínico. “Entre o pessimismo e o cinismo existe um abismo”, completa.
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