Esse texto não é um ataque, é só uma afirmação. Nem tudo é sobre você! Mas tudo bem, às vezes o cérebro prega peças e faz parecer que as situações giram sempre em torno de nós mesmos. Como quando alguém posta uma indireta na rede social e, de repente, você se pega pensando o que fez de errado. Quando passa por um momento constrangedor e acha que todos estão te observando. Ou então quando alguém não te cumprimenta e assim surge uma rixa.
Nesses momentos, achar que as coisas são sobre si pode parecer egocentrismo, quando na verdade é natural enxergar o mundo através da própria perspectiva. Se equilibrado com a reflexão e entendimento do próprio estado interior, esse comportamento é só parte da natureza humana.
De onde vem essa tendência?
Achar que tudo se refere a si é uma tendência que pode ser explicada pela psicanálise. Esse campo de estudo entende que o indivíduo se constitui desde cedo a partir da experiência de ser visto, nomeado e interpretado por outras pessoas, principalmente pelos pais.
“A criança aprende sobre o mundo através do olhar do outro e, nesse processo, o mundo é percebido como se estivesse girando ao seu redor. Mesmo quando crescemos, essa lógica não desaparece por completo: ela permanece, em certa medida, como base da nossa forma de existir”, explica Denise Caroline Feitosa, coordenadora do curso de psicologia da Universidade Brasil, em Fernandópolis.
Na psicologia contemporânea, a inclinação de achar que tudo é sobre si é chamada de viés da autorreferência. O cérebro humano sempre tenta encontrar sentido nos ambientes, falas e ações, e faz isso a partir da própria história, das emoções e memórias. Muitas vezes inconscientemente. Assim, ao relacionar as situações presentes com aspectos internos, as pessoas conseguem processar informações com mais facilidade.
Quando os indivíduos se deparam com situações ambíguas – como uma indireta em rede social – o cérebro preenche as lacunas com interpretações autocentradas. “Essa leitura pessoal nem sempre está errada, mas frequentemente está contaminada por projeções, inseguranças e feridas anteriores”, aponta Denise.
Autocentralidade saudável e egocentrismo
O viés da autorreferência é uma condição humana, comum a todos e normal de se sentir. O que não é normal é o egocentrismo, quando a autocentralidade fica estática e há uma maior dificuldade de reconhecer a existência e a necessidade dos outros. O filtro do mundo através das próprias experiências e emoções se fecha e se auto refere a todo momento, de forma a reafirmar seu valor.
Viver em uma autocentralidade saudável é reconhecer as próprias perspectivas e, ao mesmo tempo, não enxergá-las como absolutas. “É justamente essa capacidade de descentralizar-se – de se ver como parte de uma trama mais ampla – que permite relações mais maduras, mais empáticas e menos defensivas.”
A questão da autoestima
A neuropsicóloga Aline Rezende Graffiette aponta que a centralidade exagerada e egocêntrica é ancorada, sobretudo, na baixa autoestima. Observar a vida apenas com a própria perspectiva vira um mecanismo para justificar a pouca confiança em si mesmo. “Então, todos os ataques externos têm que dizer algo sobre mim, porque eu reforço essa ideia de que o mundo fala sobre mim. E, em quase 100% dos casos, o mundo não está nem aí para você, o mundo nem lembra que você existe”, diz.
Pode até parecer um pouco duro, mas é a realidade. Por isso as pessoas se ofendem quando ouvem “nem tudo é sobre você” ou “o mundo não gira ao seu redor”. Afinal, não é fácil admitir que a própria percepção dos acontecimentos está endurecida pela percepção de nós mesmos.
“O que é nosso chega até nós, e chega de forma muito direta. Você não precisa se dar ao trabalho de conjecturar, de imaginar, de inferir o que as pessoas estão dizendo. O mundo deu essa liberdade para elas.”
O papel da coletividade
Muitas vezes as pessoas projetam dúvidas e medos nas ações dos outros, mesmo que isso não tenha fundamento. Isso acontece por uma constante busca por validação social. “Em vez de perguntar ou esclarecer, acabamos criando interpretações baseadas em suposições”, diz Luciano Gomes dos Santos, professor de ciências sociais do UniArnaldo Centro Universitário.
Nas redes sociais, essas sensações se intensificam. A constante exposição a informações, opiniões, desabafos e mensagens vagas pode levar à interpretação equivocada de que algo foi direcionado para você.
“Esse tipo de comportamento, quando analisado além da perspectiva individual e psicológica, revela muito sobre o funcionamento das sociedades contemporâneas enquanto coletivos. A tendência de achar que tudo gira em torno de nós mesmos indica, em parte, uma cultura marcada pelo individualismo, na qual o ‘eu’ ganhou destaque sobre o ‘nós’”, explica Luciano.
Ele cita que em muitas sociedade modernas há uma valorização excessiva da autoestima e da autoimagem, fator que pode ser observado nas redes sociais, espaços de constante exposição e busca por validação.
“Esse contexto coletivo acaba reforçando a percepção de que estamos sempre sob observação, como se houvesse uma plateia invisível nos acompanhando o tempo todo. Esse fenômeno, chamado de ‘efeito de holofote’ na psicologia social, torna as pessoas mais autocentradas, levando-as a interpretar comportamentos alheios como sendo reflexos de si mesmas”, aponta o cientista social.
Além desses aspectos, a coletividade também pode alimentar padrões de comparação e julgamento, o que torna as pessoas mais vulneráveis e propensos a acreditar que são julgadas e atingidas por tudo e todos.
“Esse comportamento não surge apenas da insegurança individual, mas também de uma construção cultural coletiva que favorece a hipervalorização da imagem pessoal, o medo do julgamento e a dificuldade em enxergar as ações dos outros de forma neutra e desvinculada de nós mesmos.”
Como identificar o que realmente é sobre você
Quando vem o sentimento de que tudo é sobre si, possivelmente algum problema interno foi ativado, projetando nas outras pessoas o que não é possível enxergar no próprio interior – medo, culpa e insegurança. Assim, o viés da autorreferência passa a ser um mecanismo de defesa.
Para diferenciar o que é nosso do que é dos outros, os profissionais indicam fazer questionamentos simples, observando o próprio estado mental:
- Por que isso me afeta tanto?
- Isso acontece com frequência?
- Essa reação faz sentido diante do que realmente ocorreu?
- O que isso diz sobre mim?
- O que eu respondo nessa situação?
“Você vai perceber que [a situação] não diz nada sobre você. Se a pessoa não me disse ‘bom dia’, isso passa a ser um problema dela, e não meu. Isso só vai acontecer se essa pessoa conseguir encarar um processo de autoconhecimento, onde ela possa resgatar as bases da autoestima dela. Porque autoestima é aquilo que eu vejo sobre mim, e autoconfiança é aquilo que o mundo devolve sobre mim”, destaca Aline.
Esse movimento de discernimento exige maturidade emocional e é um trabalho constante, mas pode ser libertador. Entre outras práticas, estão a psicoterapia, que oferece um espaço seguro para olhar para dentro de si, a meditação, que cultiva a escuta interna, e o trabalho de lidar com as frustrações.
“Isso é menos doloroso do que parece. Na verdade, é o que permite experimentar leveza, sair da defensiva, e abrir espaço para relações mais genuínas onde o outro não é mais ameaça, mas presença”, ressalta Denise.
No contexto social, desenvolver a empatia, com o entendimento de que cada um vive uma realidade distinta, ajuda a reduzir a tendência de levar tudo para o pessoal. “Lembre que a maioria das pessoas está tão imersa em seus próprios problemas que dificilmente está pensando em nós tanto quanto imaginamos”, finaliza Luciano.
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