Liberte-se do ideal do amor romântico para viver o amor real
Livre do ideal do amor romântico, o relacionamento amoroso tem tudo para ser uma experiência de crescimento baseada em trocas possíveis e verdadeiras
Conversas profundas regadas a concordâncias, tarefas da casa bem distribuídas, contas divididas em harmonia. Os sonhos, iguais. Os dois caminham de mãos dadas em todo e qualquer lugar. Impressionantemente também têm os mesmos gostos e vão aos lugares juntos de maneira voluntária e feliz. De tão sintonizado, o casal nunca briga. Sempre se entende no olhar. E assim percorrem uma vida inteira: os filhos chegam, se vão, e eles avançam unidos até a morte. Se você sentiu vontade de suspirar ao ler essa introdução, não se reprima. O amor romântico está absolutamente entranhado no imaginário ocidental a ponto de abduzir nosso desejo.
Por mais irracional que possa parecer, nos deixamos envolver pela fantasia do relacionamento perfeito e nos esfolamos para que ela funcione.
Só que, na experiência cotidiana, o ideal romântico tem gerado mais angústia e insatisfação do que vontade de sorrir a troco de nada.
O perigo das ilusões do amor romântico
Isso não significa, de forma alguma, que amar e partilhar a vida com alguém – ou com mais de uma pessoa, no caso dos trisais e do poliamor – seja uma escolha fadada ao fracasso.
Não mesmo. “O amor é inerente à nossa natureza e é capaz de aumentar o bem-estar”, destaca Renato Noguera, doutor em Filosofia e pesquisador das filosofias e mitologias africanas e indígenas, no livro Por que Amamos: O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor (Harper Collins).
Que fique claro. Não há nada errado com o sentimento, e sim com as expectativas e ilusões que projetamos sobre o encontro amoroso.
Do paraíso, despencamos para o chão de concreto. Dói! Estupefata com o grau de angústia e aflição registrado em seu consultório devido às mazelas afetivas, a psicanalista Regina Navarro Lins dedicou cinco anos a uma robusta pesquisa sobre as origens e os desdobramentos do amor, da Pré-História à atualidade.
Como surgiu a ideia do amor romântico
Suas descobertas estão reunidas em O Livro do Amor – Volumes 1 e 2 (Best Seller). Regina nos informa que o ideal do amor romântico, como construção social que é, surgiu na Europa, no século 12, como uma derivação do amor cortês.
Mas, por séculos, o ser amado se restringia ao plano do desejo irrealizável, já que as famílias decidiam com quem seus filhos se casariam.
No século 19, os casamentos enamorados ganharam um pouco mais de espaço, mas ainda eram minoria. O auge do amor romântico idealizado se deu nos anos 1940, bastante alardeado pelos filmes hollywoodianos.
E assim se mantém até hoje, com a ajuda das propagandas de margarina, das séries de streaming e das redes sociais.
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Ninguém completa ninguém
Mas andar de mãos dadas pela vida requer uma profunda vontade de conhecer intimamente o outro
Afinal, por que a ideia que fazemos do amor é problemática? “Um dos motivos principais é que o ideal do amor romântico carrega a ilusão de que a felicidade está ali. Naquela pessoa com a qual você vai ter um relacionamento. Por ser uma fantasia, não condiz com a realidade”, afirma Keila Bis, psicanalista e colunista do portal Vida Simples.
É aquela velha e insistente imagem de duas metades que se fundirão, formando um todo sem falhas. Logo, o outro, o ser mais especial da Terra, atenderá a cada uma das nossas necessidades.
Enfim, seremos completos. Livres da carência e da insegurança. Seguindo esse raciocínio, quando iniciamos um namoro, levamos toda essa carga de fantasia para o relacionamento.
Não é difícil imaginar o que acontecerá quando, com o passar do tempo, o real aparecer. “E o real somos todos nós, com nossas coisas boas e ruins, nosso lado legal e nosso lado chato, nossa beleza e nossa feiura, bondade e egoísmo, profundidade e superficialidade.”
“Junte-se a isso o cansaço, o estresse do trabalho, adoecimentos, problemas financeiros, rotina e férias. É o confronto do real com o ideal”, expõe Keila.
A vida real não permite o faz de conta
O que pode ser mais “a vida como ela é” do que dormir e acordar com a mesma pessoa, décadas após décadas? Na crueza da rotina conjugal não há espaço para faz de conta.
Por outro lado, se os amantes estiverem comprometidos em crescer e se transformar por meio da troca, ultrapassando frustrações e desencantos, coisas incríveis podem ser construídas.
Se nos reconhecemos como seres limitados, buscando melhorias para nossas imperfeições e dificuldades, ficará mais fácil acolher o outro em suas insuficiências.
Não partilhamos os dias com um deus ou uma deusa, e sim com um ser humano. Então, flexibilizar exigências e reduzir expectativas – sem jamais tolerar situações abusivas – são exercícios fundamentais para o amor vicejar.
“O amor mora justamente em nós suportarmos a alteridade, as diferenças, em vermos o outro na sua completude, dentro das suas limitações”, sustenta Keila.
Como equilibrar amor romântico e individualidade
Outro ponto fundamental é o respeito à individualidade. E aqui precisamos nos equilibrar numa corda delicada. “Um relacionamento saudável é mais provável que aconteça quando ambos vivem sua autonomia financeira, emocional e social, o que mostra o respeito à individualidade de cada um”, afirma Marina Simas de Lima, psicóloga clínica especialista em Terapia de Casal e Família e em Sexualidade Humana, além de cofundadora do Instituto do Casal.
Keila faz coro. “A individualidade é crucial no sentido de cada um estar inteiro na relação, cuidando da própria vida, dos seus desejos, do seu mundo psíquico e emocional, ao mesmo tempo que quer estar com o outro porque é gostoso, é rico, é interessante, dá tesão”, ela enumera.
Porém, quando o cultivo do eu descamba para o excessivo individualismo, pode acontecer de o casal apenas coabitar o mesmo endereço em vez de realmente desfrutar da vida a dois.
Cria-se, assim, uma fissura comprometedora. “Em relações muito focadas no individual, cada um do seu jeito, a conjugalidade fica fragilizada, sem conexão, intimidade e projetos em comum”, alerta Marina.
Segundo ela, bons amantes são equilibristas que sabem respeitar a vivência do “eu” de cada um com o “nós”, fruto daquela parceria.
Já reparou como tem gente que não quer abrir mão de nada ou fazer qualquer esforço para estar com o outro? Esse caso, que costuma provocar desgaste na relação, requer atenção.
“Aí já estamos falando de narcisismo, e se relacionar com pessoas muito narcisistas é pedir para não ser visto, para não ter essa preciosidade do relacionamento que é trocar. Eu te ofereço o meu universo e você me oferece o seu”, alerta Keila.
O amor romântico é como um grão
A partir dessa disposição mútua, mesmo relacionamentos longos vivenciam muitos términos e preciosos recomeços
Como tudo na natureza, o amor romântico também está exposto ao tempo e às suas contingências. Se dependesse do nosso desejo mais sincero, preservaríamos o laço intocado numa bolha à prova de mudanças, concorda?
Assim nos blindaríamos contra o desamor. Porém, viver no medo do fim é se aprisionar na angústia da perda, do abandono ou da rejeição. Sim, amores acabam, mas também renascem.
Dói deixar uma fase para trás, um jeito de ser e de se reconhecer, mas é necessário para que ambos se desenvolvam. Os namorados precisam deixar que os companheiros assumam suas posições e, posteriormente, se for o caso, o pai e a mãe dos filhos gerados.
Não serão os mesmos que sempre foram. Da mesma forma, os desejos variam, os sonhos mudam de direção, as personalidades ganham novos matizes, a vida com suas intempéries vai deixando marcas na alma de cada um.
Será que deu errado, mesmo?
Porém, mesmo modificados num aspecto ou em outro, o casal pode se afastar, se aproximar, se reencontrar inúmeras vezes em sua história.
“Duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos amores”, escreveu Clarice Lispector. Quanto mais natural for esse processo de fluxo e refluxo, menor será o sofrimento.
“De acordo com a fase da vida, idade, personalidade e experiências vividas, estabelecemos um padrão relacional predominante. No entanto, no decorrer da nossa jornada, de acordo com as novas demandas, desejos, propósitos e expectativas, tendemos a atualizar, reescrever e ressignificar nossas relações”, esclarece Marina.
Claro que essas transições podem acordar muitos fantasmas: medo, resistência, frustração e estresse. Contudo, o que advirá dessa depuração pode ser extremamente recompensador.
“Nos tornamos mais ricos, mais interessantes, mais saudáveis. Nós precisamos nos fertilizar com o novo, e isso acaba por deixar o relacionamento mais vivo. Na mesmice, ninguém cresce”, defende Keila.
O desafio de manter o amor se movimentando
Relacionar-se com os pés no chão e o coração bem ajustado no peito é ir ajeitando coisinha atrás de coisinha enquanto houver vontade de caminhar junto, reparando descuidos e reinventando olhares.
Sim, é trabalhoso. Às vezes, por demais desafiador. “Lavrar o território afetivo é cotidiano trabalho para toda a vida. Mas o aprendizado do amor não é mesmo tarefa para preguiçosos nem distraídos”, disse certa vez o psiquiatra Flávio Gikovate (1943-2016).
Por que compensa? Porque sem o espelho do outro não aprofundamos nossa experiência humana, que tem tudo para ser imensa como o espectro do amor.
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RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista e entusiasta dos amores lúcidos e atentos aos movimentos da vida.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 239 da Vida Simples
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