Glycya Makuxi, da nação indígena Makuxi, herdou não apenas o nome e a cultura de sua família, que ocupa o Território Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Dos pais, que trabalham como professores, ela também herdou a profissão. Glycya cresceu transitando entre sua cultura e tradições indígenas e a cultura urbana da capital do estado, Boa Vista, acompanhando seus pais que também iam à cidade para ministrar aulas. E por isso, teve contato com o racismo contra a sua origem enquanto ainda era criança.
“Minha mãe trabalhou por um bom tempo na cidade como professora. Então eu ficava por lá para estudar, e as férias eu passava na aldeia, com a minha comunidade”, conta. Ela relembra que falou sua língua nativa até os cinco anos, quando começou a frequentar a escola da capital e acabou se afastando do idioma.
“Na escola, sabe como é, eu tive que ocultar esse lado. Então eu fui esquecendo a língua, mas agora eu estou reaprendendo o meu primeiro idioma”, relembra Glycya, que também é comunicadora e fundou o portal de notícias Informativo Levante Indígena.
A educadora conta que hoje procura oferecer, dentro da sala de aula, uma educação diferente da que teve, a fim de trazer mais respeito na formação de cada cidadão.
Em sua jornada acadêmica, que começou em uma graduação em psicologia, Glycya relata que já presenciou diversos casos de racismo contra pessoas indígenas, inclusive contra ela mesma.
“Aqui na Universidade Federal de Roraima tem cursos específicos para a população indígena. Tem licenciatura indígena, gestão de saúde, gestão ambiental, e é só para indígenas. E sempre tem algum caso de racismo, porque no restaurante universitário, quando os alunos vão almoçar, alguns estudantes não-indígenas riem e fazem gestos discriminatórios”, conta a professora.
Pessoas indígenas sofrem racismo ontem e hoje
Apesar dos casos, ela percebe uma dificuldade nas denúncias, porque muitos acreditam que a discriminação sofrida pelos povos indígenas não se enquadra no que chamamos de racismo.
“Quando vamos denunciar, muita gente não ainda não sabe nomear o que foi aquele ato de agressão. Mas é prejudicial não se falar sobre isso, e é importante nomear. Porque muitas das situações pelas quais nós passamos não são uma besteira, são casos de racismo”, aponta.
Nesse contexto, ela se recorda de um caso que ocorreu com outra estudante da sua faculdade. A jovem foi vítima de ataques racistas por outros estudantes, que a chamavam de termos pejorativos como “caboclinha”.
Mas a mulher indígena, que conhecia bem seus direitos, levou a denúncia para a delegacia e processou um estudante por crime de racismo. Ele foi indiciado, e ela ganhou a causa.
“O máximo que aconteceu foi ele cumprir uma pena realizando trabalho voluntário, mas pelo menos foi indiciado”, relembra Glycya. “Ela foi a primeira [estudante] que teve coragem de denunciar, porque antes a gente deixava passar”. Nesse momento, lembra a professora, ela entendeu que a lei também serve e defende todas as pessoas, inclusive indígenas.
Racismo contra indígenas começou na colonização
Não é de hoje que a discriminação contra os povos originários começou no Brasil. Para entender onde se origina esse paradigma, precisamos voltar à expansão marítima europeia e à invasão da América por colonizadores europeus. Desde 1500, todo o território brasileiro tem vivenciado um longo processo de colonização, afetando milhões de pessoas de diferentes nações indígenas.
Edson Kayapó, que é escritor, ativista indígena, historiador e pesquisador na McGill University, do Canadá, nos relembra como esse racismo foi imposto desde os primórdios da construção do estado brasileiro.
“Considerar como inferiores todas as formas de vida dos povos indígenas é um projeto que está posto aqui desde o século 16, quando começaram as invasões dos europeus”
, aponta o professor Edson.
“O padre Manoel da Nóbrega, que veio para o Brasil e morreu no Rio de Janeiro em 1570, dizia que a nossa inferioridade tinha a ver com o fato de que nós [indígenas] não tínhamos fé. Segundo ele, nós tínhamos credulidade, e credulidade seria uma vagabundagem da fé”.
Essa discriminação permaneceu. Quando o Brasil se tornou independente de Portugal, a primeira Constituição Brasileira, formulada em 1824, ignorava completamente a existência dos povos indígenas no território nacional, tornando-os invisíveis em relação ao estado que tomava forma com a expansão do colonialismo para o interior do país.
A segunda constituição, de 1891, também silenciava as nações indígenas. “O que dá a entender que o estado não nos enxergava, não via os nossos povos como pertencentes à sociedade brasileira”, aponta Edson.
“Representantes políticos do Brasil, no final do século 19, diziam que os indígenas seriam extintos por sua ‘incapacidade de acompanhar o progresso nacional’. Então, veja que existe um projeto histórico de muita violência, de genocídio, de epistemicídio e de ecocídio, equivocadamente baseado em crenças limitantes que estão presentes até os dias de hoje”, relata o historiador.
Marco temporal é uma nova forma de racismo
A história cria a realidade, e desde a colonização, o Brasil segue sendo um país violento e inseguro contra os povos originários deste território. Um exemplo atual é a tese do marco temporal.
A tese, que não tem comprovação científica, surgiu em 2009, justamente como um argumento contra a demarcação do Território Indígena Raposa-Serra do Sol, que além de ser habitado pela família Makuxi, da professora Glycya, também abriga outros quatro povos indígenas: Ingarikó, Patamona, Taurepang e Wapichana.
A ideia que o marco temporal defende é de que apenas as terras que estavam sendo ocupadas por indígenas em 5 de outubro de 1988 — data em que foi promulgada a última constituição federal –, deveriam permanecer demarcadas e garantidas a esses grupos.
Porém, o interesse em tentar tornar lei o marco temporal está em desmatar as áreas de floresta para exploração mineral ou para exploração de monoculturas do agronegócio. “É a bancada ruralista e seus apoiadores no Congresso Nacional que estão dizendo que as regras têm que mudar”, aponta o professor.
Colonização trouxe o racismo
O grande problema, porém, é que esse marco não leva em consideração que os indígenas ocupavam todo o território nacional e viviam dinâmicas próprias muito antes da invasão. Afinal, antes de 1500, milhares de nações indígenas de diferentes culturas habitavam todo o continente americano. Apenas na América do Sul, estima-se que população total era em torno de 50 milhões de pessoas.
Porém, ao longo desse processo, muitas dessas nações foram extintas por doenças dos europeus, por imposições culturais e religiosas, ou destruídas por eles de forma violenta.
Então, ativistas que trabalham pela causa indígena defendem que, se é para ter um marco temporal, que seja considerando a data em que os povos europeus chegaram neste território.
“Nós, povos indígenas, estamos aqui desde antes da existência do estado brasileiro. Nós já estávamos aqui e como somos os originários ocupantes da terra. Portanto, cabe ao povo e ao estado brasileiro demarcar e proteger os nossos territórios”, explica Edson. E complementa:
“Eles se esquecem que nós somos povos originários, e muitos parentes indígenas não estavam nos seus territórios naquela data da Constituição porque a sociedade brasileira, os grandes fazendeiros e o próprio estado brasileiro expulsou essas pessoas dos seus territórios”.
Vidas indígenas estão em risco
Além do racismo institucional contra indígenas, outros ataques e formas de discriminação seguem acontecendo no país. Edson relembra o caso de Galdino Pataxó, que foi queimado vivo enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília, em 1997. Ele estava na capital federal para lutar pela demarcação do seu território e morreu assassinado enquanto dormia no ponto de ônibus porque não tinha dinheiro para pagar um hotel. O caso chocou o país e expôs a realidade sobre as vidas indígenas, que estão sempre em risco. “Isso não é preconceito, é racismo”, complementa o professor.
“Assim como é racismo o que aconteceu com o grande líder Xicão Xukuru, que morreu numa emboscada de pistoleiros em Pernambuco, em maio de 1998. Foi executado na frente da sua família, dentro da aldeia”, conta Edson.
Esses casos históricos são apenas dois das diversas violências que os povos indígenas vivenciam diariamente, ainda sem punições efetivas aos autores dos crimes. “Foi uma conquista quando o racismo tornou-se crime inafiançável, porque essas histórias não podem se repetir. Diante de todo esse racismo que nós temos sofrido desde o século 16, as políticas públicas até então desenvolvidas são muito tímidas”, diz o professor.
“É preciso haver políticas muito mais sérias. O estado tem que tomar atitudes para assegurar a integridade física e segurança dos povos indígenas brasileiros”, completa.
Comunicação é ferramenta indígena
Cristian Wari’u, nascido no território indígena de Parabubure (MT), tem 26 anos e faz parte de uma geração que permanece na mesma luta, mas com novas ferramentas. Em Brasília, onde mora atualmente, o jovem cursa comunicação organizacional, e trabalha como criador de conteúdo digital desde o fim da adolescência.
Para ele, entrar no movimento de militância indígena foi um processo natural, parte da sua socialização. “Eu acho que o ativismo indígena está muito ligado às pessoas indígenas de um modo quase que “de fábrica”. A gente já nasce no meio de uma luta, eu sou filho de duas lideranças indígenas de povos diferentes”, explica o comunicador, que tem ascendência Guarani, por parte de mãe, e Xavante, pelo pai.
Wari’u conta que sempre teve um letramento muito claro sobre sua identidade e o lugar que ocupa na sociedade brasileira. Afinal, desde a época do ensino fundamental, na escola, percebia que as pessoas não-indígenas tinham muitas perguntas relacionadas a sua origem. O jovem relata que cresceu sendo questionado nesses espaços, sobre quem ele era, e por que estava estudando.
“Eu costumo dizer que sou comunicador indígena desde os meus sete anos, porque eu sempre tive que me explicar para as pessoas porque que eu estava na escola, porque meu nome é Wari’u, mas também é Cristian”, relembra o estudante, que logo cedo enxergou na comunicação uma forma de abrir pontes e caminhos para um convívio melhor.
Com a chegada da internet, percebe o jovem, as novas gerações de povos indígenas têm se fortalecido e promovido uma valorização da identidade indígena.
Um acampamento de esperança
“Existe um evento que acontece todos os anos, no mês de abril, aqui em Brasília: o Acampamento Terra Livre. Eu sempre ia nesses eventos e era cheio de pessoas adultas. De alguns anos para cá, jovens indígenas começaram a frequentar o espaço, por querer conhecer os influenciadores indígenas.”
Cristian entende a ascensão de influenciadores como um fato positivo na luta pela garantia dos direitos das pessoas originárias. “Então, de um certo modo, esses comunicadores trouxeram mais a juventude para o movimento indígena, o que é bem importante”.
O Acampamento Terra Livre acontece desde 2004 e é a maior assembleia de nações e organizações indígenas do Brasil, reunindo uma grande confluência de culturas originárias do território brasileiro na capital federal.
Durante o evento autogerido, acontecem palestras, encontros de mulheres, shows, e muitas trocas materiais e imateriais entre os parentes.
A educação como ferramenta transformadora
Com quase 80 mil seguidores em seu perfil do Instagram (@cristianwariu), e com vídeos que alcançam mais de um milhão de visualizações no Youtube (@wariu), o conteúdo que Wari’u produz é usado como referência até mesmo na universidade em que ele estuda.
“Muitos professores chegam em mim e falam que utilizaram meu vídeo em sala de aula. Pedidos chegam no meu e-mail, relacionados a obtenção de direitos de imagem, para que livros didáticos usem cenas dos meus vídeos para explicar fatos relacionados aos povos indígenas”, conta o comunicador.
E assim, aos poucos, a sociedade brasileira, baseada em cinco séculos de colonização inspirada em modelos de vida europeus, vai conhecendo melhor os modos de vida dos povos indígenas e entendendo que eles também fazem parte da identidade do Brasil.
Cristian conta que, certa vez, seu irmão caçula teve uma bela surpresa ao abrir uma apostila que o professor distribuiu durante uma aula de história: uma foto do irmão mais velho. Ele diz que essa lembrança sempre o faz refletir sobre sua própria educação, a falta de representação que tinha em sua época, e como essa realidade tem se transformado para melhor.
Professores que educam para libertar
É com o objetivo de continuar transformando essa realidade para melhor que Glycya busca inspiração para ministrar suas aulas dia após dia, dentro e fora de sala de aula.
Em Roraima, estado com a quinta maior população indígena do país, a educação escolar indígena tem sido essencial para fortalecer as diferentes culturas originárias e promover uma comunicação em que o respeito seja a base das relações.
Afinal, as primeiras pessoas indígenas a compreender o amplo contexto da colonização e a lutar pela vida indígena e pela floresta foram os professores.
Isso porque na educação escolar indígena, realizada pelo Ministério da Educação (MEC), os professores de ensino fundamental e médio nas aldeias são pessoas indígenas que possuem tanto conhecimentos tradicionais da cultura indígena, quanto conhecimentos da cultura não-indígena.
Para ter acesso ao conhecimento não-indígena, é preciso estudar na cidade. Com esse contato direto com culturas não-indígenas, os professores voltam para as aldeias com bagagem cultural carregada de consciência sobre o contexto em que vivemos.
Transformação só é possível com educação
“Eu vi meus pais lutarem pela educação desde quando eu era muito nova. É uma ferramenta de mudança na vida dos jovens. Quando dou aula, procuro mostrar aos alunos indígenas que eles podem ir mais longe, que devem acreditar no potencial deles”, declara a professora Glycya.
Seus pais, inclusive, são sua maior inspiração pessoal e profissional. “Eu me esforço todos os dias para ser a melhor educadora porque carrego no coração os ensinamentos dos meus pais. Eles foram verdadeiros pioneiros na luta pela educação escolar indígena na Amazônia. Sempre batalharam para que nossas comunidades recebessem uma educação digna, sem esquecer de respeitar nossa cultura e nossas tradições”, rememora.
Mas a lembrança mais viva que Glycya guarda é de sua mãe, a professora Gleide, que dividia seu tempo entre lutar pela educação escolar indígena e cuidar de sua família com amor. “Dona Gleide é uma força da natureza, sempre organizando reuniões e assembleias para debater nossas dificuldades e conquistas. Graças ao esforço dela, muitos da nossa família hoje são educadores. Vários professores foram formados por ela, e isso é algo que me enche de orgulho”, complementou.
A educadora confirma que para ela, e para as pessoas da sua comunidade, a educação é o ponto de partida, de chegada e de saída. É onde a transformação começa.
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Sobre a série Por uma Vida Antirracista
Em 2024, pela primeira vez na história, o feriado de 20 de novembro – Dia da Consciência Negra – acontece em todo o Brasil. Para celebrar a nacionalização da data, a Vida Simples apresenta em seu portal a série Por uma Vida Antirracista. São seis matérias — e uma publicação bônus — abertas ao público com reflexões sobre racismo, depoimentos e dicas para ter atitudes antirracistas. Entendendo o papel do jornalismo na promoção de uma sociedade mais informada e consciente, a Vida Simples usa sua plataforma para trazer à tona a luta de pessoas que, por muitas vezes, não têm suas vozes ouvidas. A próxima matéria vai abordar a cultura negra como ferramenta na luta por equidade no Brasil.
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