Note que pouco estudamos sobre Filosofia Africana, História da África e os conhecimentos afro-diaspóricos que foram construídos no Brasil ao longo dos séculos. Seja dentro das universidades, nas escolas ou na produção de conteúdo jornalístico, frequentemente somos direcionados para ensinamentos europeus ou do Norte Global (os países que, ao longo do tempo, foram construindo a sua relevância no planeta).
Apesar desse contexto estar presente hoje na sociedade brasileira, nos últimos anos há diferentes esforços de estudantes, movimentos sociais e especialistas no assunto para descolonizar o nosso pensamento e abrir as portas para outros modos de vida possíveis, práticas de autocuidado e de convivência que se complementam e apresentam diversas perspectivas para a construção de um futuro cada vez mais plural, diverso e aberto à multiplicidade cultural do país.
É por isso que, em um momento no qual estamos cada vez mais reflexivos, introspectivos e imersos em questões voltadas ao autoconhecimento, vale a pena conhecer uma visão diferente sobre o mundo e os ciclos. Construída há cerca de 10 mil anos pelos diversos saberes, teorias e práticas ritualísticas, juntos formam o que chamamos hoje de Filosofia Africana.
Choques culturais e formação do Brasil
Não é novidade que o nosso país é formado pela junção multicultural de povos europeus, indígenas e africanos, com contextos, culturas, práticas e religiões diversas. Forçados pela colonização e pelo poder hegemônico europeu, a população negra e nativa do Brasil, apesar de ser a maioria, foi perdendo espaço e cada vez mais perdendo importância nos livros didáticos e na formação geográfica do país.
Por outro lado, pesquisadores, estudos e análises apontam o papel que a educação e a cultura têm na recuperação desse legado e da ancestralidade afro-diaspórica. “Eu não vejo outro meio que não seja a educação. Não tem como você despertar uma consciência racial sem que haja um letramento antes, então o conhecimento é a melhor ferramenta que a gente tem, e é justamente o conhecimento que foi usurpado da nossa história”, explica Elaine Virginia, psicóloga formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e estudiosa de questões raciais.
Nos últimos anos, a história e produções africanas e diaspóricas passaram cada vez mais a serem recuperadas e ressignificadas no Brasil. Exemplos disso são o filme Exu e o Universo, dirigido por Thiago Zanato e lançado em 2022, e o samba-enredo da Acadêmicos da Grande Rio, escola campeã do carnaval do Rio de Janeiro, que mostrou Exu e as diversas faces do orixá. “Hoje, o culto africano tá sendo mais percebido e aceito, coisa que há pouco tempo não era aceito sobre o brasileiro. Quando a gente fala sobre a mídia hoje, a perspectiva dessas energias da filosofia dentro da mídia é extremamente nova”, explica Muyiwa Segun (Jonatas Alexandre), historiador, pesquisador e estudioso da Filosofia Iorubá.
Para Elaine Virginia, a produção de outros conhecimentos em regiões descentralizadas e a ressignificação da produção acadêmica em outros lugares do planeta abre portas para a construção da diversidade e da pluralidade dos conhecimentos. “O que tem contribuído muito é o movimento decolonial, de questionar, porque a cultura europeia tem esse status de universal, é sempre considerada universal e não pode ter contribuições de outros povos, outras culturas e outros saberes”, enfatiza a profissional.
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Ressignificando saberes
Embora os esforços para a construção de uma sociedade plural não sejam poucos, a presença da cultura ocidental e europeia de certa forma ainda é predominante no Brasil. “A gente vive numa sociedade ocidentalizada, cristianizada, que não aceita a matriz africana ou as culturas africanas como prática, e eles aceitarem é ir contra a existência deles”, explica Muyiwa Segun (Jonatas Alexandre). “O estudo dentro do meio acadêmico e intelectual está ganhando espaço, até porque a cultura africana tem um respaldo de resistência”, acrescenta ele.
Elaine Virginia lembra do psicólogo e professor Wade Nobles, um dos precursores no movimento da psicologia afro-americana e docente emérito da San Francisco State University. Para o teórico, há um descarrilamento do ser africano, “fez com que a gente se desviasse do nosso percurso civilizatório”, explica Elaine, “a gente perdeu o nosso sentido, as nossas referências”, defende a psicóloga.
Para Muyiwa (Jonatas), a busca pela identidade e conhecimentos para além daqueles que nos são ensinados no cotidiano é cada vez uma crescente na vida das pessoas, que se abrem para novos ritos, saberes e valores. “As pessoas estão construindo uma nova identidade, e ela tem como fundamento o contato com o outro. O próprio Tzvetan Todorov [filósofo e linguista búlgaro] falava que o contato com o outro sempre vai gerar algo novo. O Homi K. Bhabha [teórico crítico indiano-britânico] fala desse novo lugar, desse espaço que se cria quando duas culturas entram em contato”, explica o professor.
Ciclos, recomeços e a coletividade na Filosofia Africana
Apesar do ano novo Iorubá ser comemorado oficialmente na primeira semana de junho – estamos atualmente no ano 10065 – a prática dos rituais de transição, momentos de introspecção e reuniões coletivas são comuns e fazem parte das comemorações das comunidades afro-diaspóricas. Muyiwa explica que o ano novo no calendário cristão não simboliza necessariamente uma mudança de ciclo para as famílias iorubás, embora isso não se aplique a todos.
Segundo o pesquisador, as transformações ocorrem tanto na forma de grandes como de pequenos ciclos na cultura iorubá. “Dentro desses ciclos existem também os ciclos individuais, que são para nós, humanos, praticantes da filosofia iorubá, mais importantes. É a sabedoria de compreender o início e o fim dos ciclos e que nós, na filosofia iorubá, nos ensina que tem ciclos que a gente precisa encerrar”, justifica.
Para Elaine, as chaves da Filosofia Africana na busca pelo autoconhecimento são, principalmente, o reconhecimento da simplicidade e da vida coletiva no nosso cotidiano. “O que a Filosofia Africana mais pode trazer é justamente a ideia da simplicidade da vida. Muitas vezes estamos no olho do furacão, mas é justamente essa percepção de se analisar um pouco de fora, ter paciência, pode dar um processo de racionalização melhor, mais eficiente”, lembra a psicóloga.
“Eu acho que essa questão de ciclos e recomeços envolve muito o exercício da paciência, de compreender que nós não estamos em um momento fácil”, acrescenta a profissional. Para ela, a paciência é a maior de todas as virtudes da Filosofia Iorubá, justamente porque ela garante a existência das demais, além do ubuntu (humanidade para todos). “Eu acho que se a gente não trouxer esses valores africanos para a nossa sociedade a gente não vai avançar”, defende Elaine.
Construindo outros mundos
O novo nem sempre nasce na espontaneidade, mas na disputa, no tensionamento das narrativas e na busca por espaço na sociedade. As mulheres só conquistaram o direito ao voto depois de séculos de luta no movimento feminista, assim como as pessoas LGBTQIAP+, que por muito tempo foram consideradas pela ciência médica como portadoras de transtornos mentais, algo que aos poucos foi revertido com a pressão de coletivos e organizações da sociedade civil.
“Eu acredito muito que a humanidade esteja caminhando para uma descolonização. A gente está vendo hegemonias sendo ruídas economicamente, crise de valores, princípios, comportamentos sendo questionados”, explica Elaine Virginia. “Acho que a gente não tem que ter medo, temos que abraçar essas frentes filosóficas, os saberes que os povos indígenas têm a nos acrescentar, o os saberes que os povos africanos têm para acrescentar, outros povos não hegemônicos, para a gente poder se refazer enquanto humanidade”, conclui a profissional.
Para Muyiwa, estamos vivendo um momento de expansão do nosso repertório intelectual, da busca por novas cosmologias e modos de vida. “A filosofia, pelo que eu entendo, é essa grande capacidade da gente analisar a nossa vida, a nossa existência, de autogerir e nos dá a capacidade de construir e terminar aquilo que necessita”, defende o pesquisador.
Abrir-se para o novo pode ser uma oportunidade para conviver com o diferente, conhecer novas cosmologias e perspectivas de como enxergar e viver a vida.
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