A fé de cada um
Quem tem algum tipo de crença espiritual é mais feliz e costuma viver mais e melhor do que quem não tem, diz a ciência. Mas, afinal, o que é a fé? E quais os caminhos que levam a ela?
Quem tem algum tipo de crença espiritual é mais feliz e costuma viver mais e melhor do que quem não tem, diz a ciência. Mas, afinal, o que é a fé? E quais os caminhos que levam a ela?
“Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma ‘faiá’”, diz a música do cantor e compositor baiano Gilberto Gil. O músico acertou em cheio: cada vez mais estudos comprovam que ter algum tipo de crença religiosa ou espiritual faz bem à saúde, aumentando a qualidade de vida, a longevidade e até mesmo a velocidade com que se recupera de doenças. Pessoas de fé também são, no geral, mais felizes, otimistas e têm mais esperança no futuro do que o restante da sociedade. Centenas de estudos científicos ao longo dos anos mostram esses benefícios.
Mas é aí que a ciência termina. Ao menos por enquanto. É possível medir os efeitos da fé e da espiritualidade, a maneira como são processadas no organismo, no cérebro. Mas não é possível provar nada sobre o objeto – ou os objetos – da fé. Se há alguma divindade lá fora, certamente ela não está muito preocupada em convencer os cientistas. E, se a divindade não está nem aí, os fiéis, ainda menos: as estatísticas variam, mas algo entre 85% e 98% da população mundial acredita em Deus ou algum tipo de força superior, apesar da impossibilidade de comprovar sua existência de forma categórica.
Acreditar em algo, apesar de tudo
“Essa é a própria definição de fé: acreditar em alguma coisa contra todas as evidências”, diz o jornalista e escritor Ricardo Alexandre, cristão de orientação batista. É um pouco como acreditar na beleza em tempos difíceis, ou ter esperança de que as coisas irão melhorar, apesar de tudo indicar o contrário. A crença religiosa é tão prevalente que há quem defenda que fomos programados para isso, como o jornalista britânico Nicholas Wade. Em seu livro The Faith Instinct (O Instinto da Fé, em tradução livre), ele defende que o comportamento religioso inscreveu-se em nosso sistema neural há mais de 50 mil anos, por meio da evolução da espécie.
Seja por via da evolução ou não, a espiritualidade é um anseio de todos nós por algo transcendente. Nesse sentido, é um atributo humano, que todos têm. Algumas pessoas encontram isso em Deus, outras, na arte; uns descobrem na natureza, outros, em um time de futebol. “Tudo tem a mesma origem: todos buscando suas próprias maneiras de enfrentar a dor de ser gente”, escreve o psicólogo Flávio Voight, diretor da Oriente Psicólogos Associados, de Curitiba.
Já a religiosidade é algo mais específico: é a organização da fé em um sistema de crenças. Rituais, preceitos, como rezar, o que fazer, o que não fazer, tudo isso está no campo religioso. As religiões fazem parte da cultura e, assim, servem também para expor a visão de mundo de determinado grupo ou sociedade. Essa é a área mais estudada pela ciência, já que a espiritualidade é um conceito muito amplo, que varia de acordo com cada pessoa, o que torna difícil estabelecer parâmetros confiáveis de comparação.
Viver mais e melhor
O psiquiatra americano Harold Koenig é um especialista mundial na relação entre fé e saúde. Ele dirige o Centro para Espiritualidade, Teologia e Saúde na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Em seu livro Medicina, Religião e Saúde (L&PM), o especialista comenta os estudos desse campo. Pessoas que frequentam algum culto religioso ao menos uma vez por semana têm 40% menos chances de desenvolver hipertensão e 29% mais chances de viver mais, em um comparativo com as que não vão a qualquer tipo de rito. Os níveis de estresse de devotos diagnosticados com alguma doença são mais baixos do que o da população em geral, e eles também apresentam menos inflamações.
E não se trata apenas de viver mais, mas também melhor. Quem é espiritualizado tem duas vezes mais chances de se declarar “muito feliz” nas pesquisas. Essas pessoas têm, em média, uma tendência três vezes maior a ver o lado bom das coisas, e têm menor probabilidade de desenvolver depressão. Entre as mulheres na menopausa, as que professam algum tipo de fé têm uma possibilidade 56% maior de ver o futuro com mais otimismo. Pessoas que seguem alguma crença vivem mais, são mais felizes e têm mais recursos internos para lidar com doenças graves. A lista continua. A pergunta que se impõe, após olhar os dados, é: como, afinal, a fé proporciona esses benefícios? É algo intrínseco ao ato de acreditar em uma força transcendente, ou tem a ver com outros fatores?
Os fatores
Aqui, também, a ciência não tem uma resposta exata. O que se sabe é que esses benefícios têm a ver com três fatores: o primeiro é a influência das religiões na adoção de hábitos saudáveis; o segundo é o apoio social, maior entre aqueles que participam de uma comunidade religiosa; e o terceiro é o valor que a pessoa atribui à crença em si, o que lhe dá maior senso de propósito e força para enfrentar as adversidades. Vamos dar uma olhada nesses fatores.
A melhor versão de si mesmo
O primeiro ponto é o autocuidado. Pessoas religiosas se alimentam melhor, fazem mais check-ups e têm uma tendência também maior a seguir os tratamentos. Em geral comem mais vegetais e bebem e fumam menos do que aqueles que não têm crença alguma, apontam os estudos. “A saúde é um estado em que a pessoa se encontra em ordem. Não é só a ausência de doença”, diz o músico Marcos Felinto. Praticante de ioga, ele estuda massagem ayurvédica e participa de cerimônias de ayahuasca há três anos.
O caminho espiritual de Felinto é inseparável de sua música. Tendo participado de bandas de rock desde a adolescência, hoje seu trabalho segue por outro caminho. Sons da natureza se entrelaçam a padrões circulares, em climas etéreos e densos – uma espécie de xamanismo eletrônico sofisticado. A música rebelde e energética do punk parece muito distante das atmosferas que ele cria agora, quase 20 anos depois. Mas a raiz, segundo ele, é a mesma. “O punk nasce de um descontentamento com as instituições, com o direcionamento das relações, com a forma como a sociedade estimula o consumo”, diz Felinto. Era também um espaço de liberdade, em que ele conseguia fazer uma pesquisa de si mesmo, experimentar versões aprimoradas de si. Esse mergulho para dentro, essa busca por relações íntegras, tudo isso ele vive hoje, no caminho espiritual.
Para Felinto, a saúde surge a partir do autoconhecimento, de perceber as coisas que afetam objetivamente o corpo. “Uma das leis da vida é que tudo passa pela gente. Tudo nos afeta”, diz. E isso inclui os alimentos e substâncias
que ingerimos, a forma como cuidamos do corpo. A espiritualidade, para o músico, o ajuda a criar um mapa melhor para lidar com as próprias questões. É cultivar uma melhor relação consigo mesmo e também com os outros.
Conexão, compaixão
Essa relação com as outras pessoas tem a ver com o segundo fator que beneficia a saúde das pessoas de fé: o apoio social e o pertencimento a uma comunidade. As religiões costumam fornecer uma rede de apoio, um grupo no qual confiar e do qual depender em caso de adversidades, como doenças, desemprego, crise econômica.
Mesmo entre quem não segue uma religião formal, a espiritualidade estimula algo importante para nós: um sentimento de conexão. “Passei a trabalhar na frequência do amor”, diz Felinto. “E amor tem a ver com uma habilidade de acolher. De incluir. De ser empático mesmo sem entender exatamente o ponto da outra pessoa.” O músico busca preservar a saúde de suas relações, mantê-las íntegras, como fontes de criação e potências para descobrir novos caminhos. Na música, Felinto tenta criar ambientes para que as pessoas se escutem. Nascido em Itaquera, periferia de São Paulo, o músico participa de grupos de ativismo negro e tenta mediar as relações entre brancos e negros, homens e mulheres. “Eu me tornei uma ferramenta. Hoje, não me vejo apenas como músico, mas como um comunicador entre mundos”, afirma.
Relações entre pessoas
A maioria das religiões traz, de alguma maneira, a questão das relações entre as pessoas. “O budismo fala muito da interdependência entre os seres”, diz a farmacêutica e consultora de saúde Jeanne Pilli. “Não tem como ser feliz sozinho.” Jeanne só conheceu a filosofia aos 40 anos, quando, por acaso, ficou sabendo de um grupo de estudos sobre a obra do monge vietnamita Thich Nhat Hanh e resolveu participar; ela já praticava ioga e gostava muito, mas sentia falta de algo. “Era, justamente, a questão da interconexão, da compaixão”, diz ela. Depois do grupo, Jeanne leu as obras do lama Padma Samten, gostou muito, e participou de alguns eventos e retiros com ele e com Alan Wallace, cientista americano que estuda o impacto da meditação e do budismo na mente humana.
Jeanne foi se envolvendo com os estudos e a comunidade, e acabou por deixar o emprego na indústria farmacêutica, que a consumia, para se tornar consultora na área da saúde. Tornou- -se a tradutora oficial de Alan Wallace no Brasil e oferece formações no programa Cultivating Emotional Balance (“Cultivando Equilíbrio Emocional”), criado pelo cientista e pelo psicólogo Paul Ekman para ensinar pessoas não budistas a meditar e lidar melhor com as emoções.
Um salto no escuro
O terceiro ponto que influencia no bem-estar é o valor que as pessoas atribuem à suas crenças. A fé ajuda a dar sentido à vida. “A palavra ‘sentido’ significa propósito. Mas também pode expressar direção”, diz Ricardo Alexandre. Os valores da fé ajudam a orientar as decisões do dia a dia, o que auxilia a reduzir o estresse.
Ao contrário de muitos jovens que questionam as instituições religiosas, Ricardo Alexandre começou a frequentar a Igreja Batista na adolescência. “Eu não sabia que havia esse jeito de ser cristão”, diz. O que o atraiu na Igreja, no início, foi a ênfase no estudo e no diálogo com o mundo, procurando construir pontes, e não muros entre gente de diferentes credos.
Quase 30 anos depois, Ricardo acredita que a experiência religiosa é algo que simplesmente acontece. “Não é pela via do intelecto. Não é pela argumentação. Certamente não é pelo debate”, diz ele. O jornalista acredita que a fé é algo de foro íntimo, e não tenta convencer ninguém de suas crenças. Ele compartilha sua experiência de forma individual, buscando mais o diálogo que o convencimento. “No cristianismo, Deus vem a seu encontro; não é uma questão de merecimento”, afirma. A quem não acredita em nada, Ricardo Alexandre sugere apenas ficar aberto, não fechar essa porta.
Fé espontânea
Para Jeanne Pilli, a fé aconteceu de forma espontânea, à medida que praticava. “Eu tinha sido cética a vida toda”, diz ela. “Era estranho, no começo, fazer as orações, ou trabalhar com a ideia de continuidade da consciência, a ideia de que nossa mente vai para algum lugar depois da morte.” O budismo, porém, é uma prática de transformação da mente. Com o tempo, a mente comum vai desaparecendo, dando espaço a uma consciência mais expansiva. “Em algum momento, você dá um salto no escuro, um salto de fé mesmo. Você confia nos mestres, na experiência deles, e avança”, afirma. Uma das coisas que mais a atraem no budismo é justamente a possibilidade de poder experimentar os ensinamentos em primeira pessoa, de realizar as práticas e perceber em si o que acontece.
Para que a fé beneficie a saúde, não adianta só dizer que acredita em algo e não se comprometer. Segundo Harold Koenig, é importante frequentar as cerimônias religiosas, repensar os hábitos, participar da sua comunidade. “É uma prática, não uma vacina”, diz Jeanne Pilli. Como tudo na vida, exige dedicação.
Continuidade da consciência
Em 2015, a avó da poeta paulistana Júlia de Carvalho Hansen faleceu. Júlia estava com ela, e foi levá-la ao banheiro. Nesse momento, ela teve uma visão delicada: um raio que parecia passar por dentro da avó, e Júlia viu, e sentiu, o espírito deixando o corpo. “Foi como um jato de luz”, diz. E de repente aquilo que era a sua avó, aquilo que fazia com que ela fosse ela, já não estava lá. Restava apenas o corpo, imóvel, nos braços da neta.
A experiência marcou a poeta profundamente. Ela, que já estava em um processo de viver sua espiritualidade, sentiu esse chamado ainda mais forte. “Eu vi a morte. Perdi o medo”, diz. Júlia, que já tomava ayahuasca havia dez anos e estudava astrologia, passou a frequentar o candomblé. Algo com significado forte pra ela, pois trilhava os passos de outro antepassado: seu avô, que décadas antes entrara por acaso em um terreiro para curar uma dor de cabeça, e imediatamente incorporou uma entidade. Atualmente, Júlia está sempre cuidando da sua vida espiritual, seja com banhos de plantas, com o estudo dos astros, com as cerimônias de ayahuasca, seja com as visitas ao terreiro. “A espiritualidade é a consciência dos fios em comum que nos ligam”, diz. “É um interesse por tudo que é vivo, e tudo que é vivo comunica.”
Mais fé, melhor
Os estudos científicos, de fato, apontam que pessoas de fé lidam melhor com diagnósticos de doenças graves e com a iminência da morte. “Quando você sabe o final, fica mais fácil”, afirma Ricardo Alexandre, referindo-se ao que acontece após a morte no cristianismo. Alan Wallace pede que seus alunos considerem a ideia da continuidade da consciência como uma “hipótese de trabalho”: “E, se existir algo depois, o que muda na vida, nos hábitos?”, ele pergunta. Assim fica mais fácil enxergar propósito na vida e no caminho espiritual.
Existem alguns casos em que a fé faz mal. São aqueles em que Deus é visto como uma entidade punitiva em vez de um ser compreensivo e amoroso. Nesses casos, a culpa e o medo podem até aumentar o estresse, diz Harold Koenig. “Alguém que tem uma experiência negativa com religião não vai encontrar conforto algum nela”, diz Flávio Voight. “Forçar alguém sem crença alguma a aderir a alguma visão religiosa não vai tornar ninguém mais feliz.”
Fé para ateus
Se a fé é algo que acontece, e não pode ser forçada, como ficam aqueles que não têm crença? Para eles, também, há boas notícias. “Espiritual, nesse caso, quer dizer propósito. Pulsão de vida, desejo, fogo no rabo, paixão. […] Algo que dê sentido à vida”, escreve Flávio Voight. “Com fé ou não, o ser humano murcha se não tiver a busca por um objetivo nobre, uma causa maior do que si.” A crença não precisa ser numa divindade superior, mas em algo que seja importante para cada um: família, amigos, poesia, natureza.
Mas, é possível ritualizar e sacralizar a vida comum, trazendo mais propósito e significado para o cotidiano. “Brincar com os filhos, trabalhar duro, criar, cantar, dançar, cozinhar, realizar tarefas e trocar fraldas são práticas espirituais tanto quanto são seculares”, diz William P. Young, autor do best-seller A Cabana, que ganhou versão nos cinemas em 2017. Se você encarar a pilha de louça como um momento de quietude e meditação, e uma forma de servir e fazer parte da sua comunidade, estará no caminho certo. Ou, como diz a canção de Gil, “A fé tá na mulher / A fé tá na cobra-coral / Ô ô / Num pedaço de pão / A fé tá na maré / Na lâmina de um punhal / Ô ô / Na luz, na escuridão”. Afinal, “mesmo a quem não tem fé / A fé costuma acompanhar”.
Jeanne Callegari já foi editora por aqui e hoje é escritora e poeta. Não segue nenhum credo específico, mas tenta manter os sentidos abertos.
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