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Nossa cápsula do tempo
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Escrevo este texto ainda no meio da pandemia, no dia que resolvemos fazer nossa cápsula do tempo para contar pra você aí do futuro como sobrevimos ao coronavírus e a todo o resto

 

Nos meus planos, 2020 seria de novas experiências. Seria o ano que comemoraria meus 40 anos; que iria, com minha família, viver em uma nova cultura; aprenderia um novo idioma; experimentaria ficar distante dos meus pais, amigos, trabalho e todas as referências que cultivei por 39 anos. Sim era um desafio e tanto, mudar de país com três crianças em fase de alfabetização.

Mas como o momento nos sinalizava que era agora ou nunca, escolhemos este ano para viver uma experiência que testaria nossos vínculos e relacionamentos. Planejei por meses a viagem, assisti a vídeos, escutei experiências, me informei sobre programas de idioma e o passo a passo do que tinha que ser feito. Foram meses de preparação, de matrícula em escola, visto de estudante e de conversa com as crianças.

Escolhemos nosso destino a partir do que gostamos e nos era importante: praia, sol e boas escolas. San Diego, na Califórnia (EUA), pareceu o destino perfeito. Em 14 de fevereiro embarcamos para viver nossa experiência gringa – com muitas e expectativas na bagagem.

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Não sabíamos onde iríamos morar e nem onde as crianças estudariam. Tínhamos que chegar lá e ver de pertinho as ofertas, conhecer os bairros e nos sentir seguros para nossa tão sonhada temporada. E foi assim os dias que passamos dentro do carro passeando pelas ruas, vasculhando sites de aluguel.

O início

O primeiro imóvel que visitamos foi o escolhido. Duas quadras da escola das crianças e de uma pracinha, parada de ônibus na porta e uma caminhada razoável até a praia. Tinha vista para piscina, dois quartos, um banheiro, bastante armários, aquecedor, ventilador e um perfumador de ambiente que marcaria nossa estadia ali.

Tudo corria bem, eu estava adorando meu curso de inglês, me adaptando a rotina doméstica e me redescobrindo na cozinha. Alice, minha filha mais velha, estava feliz com a escola, os novos amigos, se virando no idioma e nos desafios de ficar 6 horas por dia no colégio. Já os meninos estavam mais relutantes na adaptação.

Marcelo aceitava melhor, tinha dias bons e outros de insegurança, mas o retorno da professora era positivo. Fernando era o mais resistente, se fechava, relutava a ir para escola, mostrava-se tímido por não conseguir se comunicar.

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Planos de cabeça para baixo

Foi numa sexta-feira, 13 de março, dia de lua cheia, que recebemos uma ligação da escola dizendo que os meninos não queriam entrar na sala de aula. Alice, naquele dia, voltou feliz do colégio, mas com uma notícia que a desmotivou. A escola suspenderia as aulas por duas semanas devido a um novo vírus chamado covid-19.

Minha escola também adotou medidas e optou em transmitir as aulas on-line. E ali, sem nos darmos conta do que estava por vir, começamos a nos deparar com um mundo completamente diferente. O reflexo apareceu no supermercado com a falta de papel higiênico e água. Depois com o sumiço de outros itens básicos como pães, ovos e massas. Víamos cada vez mais pessoas usando máscaras nas ruas e álcool gel já era um item em extinção.

Meus planos virarem de cabeça pra baixo em uma semana. A orientação era ficar em casa, sair só para fazer coisas essenciais. Assisti a lojas fecharem, às prateleiras esvaziarem, às ruas ficarem vazias. Senti medo, fiquei em dúvida.

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As companhias aéreas começaram a cancelar seus voos e parar suas operações. Faltava um mês para Alexandre voltar ao Brasil. Ele ficaria 30 dias trabalhando para poder tirar mais um mês de férias. Minha mãe iria ficar comigo e as crianças, mas já estava certo que isso não aconteceria. Ela estava no grupo de risco e a companhia aérea já havia cancelado o voo.

Qual caminho seguir?

O jeito era voltar ou ficar e esperar a loucura toda passar. Fiquei alguns dias refletindo, mas o cenário mundial só piorava. O Brasil ainda estava no início da pandemia, e os Estados Unidos já contabilizavam suas vítimas. Mas o medo de entrar em um avião com três crianças me paralisava. Até que fiquei sem escolha e, num súbito de vamos embora daqui, comprei as passagens, arrumei as malas e embarquei na viagem mais surreal da minha vida.

Alexandre teve que ficar para fazer as questões burocráticas: fechar a conta no banco, cancelar o contrato de aluguel e comunicar a escola das crianças. A viagem de carro até Los Angeles foi assustadora – estrada vazia, uma cidade fantasma e um aeroporto sem carros no estacionamento. A conta eram três malas, três mochilas, três crianças, sem máscara e sem álcool gel.

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Não perdi a oportunidade de encher um tubo que levei vazio com o álcool disponibilizado nas paredes do aeroporto e na sala de embarque consegui comprar quatro máscaras que me custaram 7 dólares cada. Operação de guerra armada.

Foram 20 horas de voo, três aviões até Porto Alegre. Manter as crianças de máscara com as mãos limpas foi um desafio, mas descobri algo que mais tarde se confirmaria: crianças aceitam tudo e veem diversão nas pequenas coisas.

Em 23 de março entrei no meu apartamento novamente pela porta da área de serviços, onde eu e as crianças tiramos a roupas e largamos as coisas que conseguimos descarregar do carro. Fomos direto tomar banho e só depois fui capaz de relaxar. E ali, daquele dia em diante, me vi trancada em casa com três crianças pelos próximos 24 dias.

Mudanças de ares

Tínhamos que cumprir os 14 dias devido ao nosso retorno e os outros devido ao retorno do Alexandre, que chegou 10 dias depois. Os primeiros dias foram tranquilos, as crianças estavam com saudade dos brinquedos, do quarto, de assistir televisão e do calor. Meu irmão fazias as compras no supermercado e deixava na minha porta. Foi um retorno sem boas-vindas, sem encontros e abraços.

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Falávamos e nos víamos somente por vídeo e a festa de aniversário dos meninos foi em plena quarentena, só eu e as crianças, mas mesmo assim foi uma festa com bolo, velas, docinhos e salgadinhos e com direito a convidados virtuais. Nossas malas ficaram mais de 30 dias trancadas dentro do porta malas no carro.

Me vi lavando as compras que chegavam da rua, tirando os sapatos cada vez que levava o lixo para fora do apartamento. Posso dizer que alguns dias foram tranquilos, outros mais desesperadores. As crianças tinham momentos de calmaria e outros de agitação que me deixavam louca. Comecei a gritar, a brigar, a chorar mais que o necessário.

Resolvi que precisava mudar de ar, sair pra rua, nem que fosse pra ficar dentro do carro. Alexandre cumpriu a quarentena no apartamento dos meus pais, na praia, e depois do tempo trancada com as crianças, fomos para lá nos juntar a ele.

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Respiro no caos

A praia nos fez bem. Os dias eram ensolarados, não tinha muita gente, as crianças podiam brincar na rua, andar de bicicleta, correr e ir à praia brincar na areia. Foi ali, nas duas semanas seguintes, que consegui me refortalecer mentalmente, a ter menos medo, a não assistir tantas notícias que só falavam de mortes e da piora da situação.

Como se não bastasse, minha sogra de 89 anos teve que colocar um marca-passo e ficou internada na CTI durante dias devido a uma infecção respiratória.

No início sem visitas, pois estávamos de quarentena. No meio de tudo isso consegui matricular as crianças na escola para ter acesso as aulas virtuais e as atividades de casa para que não perdessem o ano. Mas me vi tendo que ser professora e mãe.

Resolvi não exigir muito de mim desta parte, pois acreditava que depois que tudo voltasse ao normal eles poderiam correr atrás do prejuízo. As crianças me surpreenderam a cada dia com sua inocência, resiliência e criatividade. Elas foram privadas de tudo, da escola, da rua, da convivência com amigos e avós e mesmo assim elas pareciam compreender tudo melhor que eu.

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Precisamos esperar que ele vá embora

Tinha um vírus lá fora e a gente teve que esperar ele ir embora. Simples assim. Descobri muitas coisas neste período com eles e sei que um dia irei lembrar com certa nostalgia e saudade.

Saudade de dormir com todos eles na minha cama, deles me acordando porque estão com fome, das milhares de perguntas que eles me fazem todos os dias, dos piqueniques em cima do tapete da sala, da barraca de lençol, da bagunça por toda casa, das brigas que tenho que mediar todos os dias. Saudade de vê-los dançando pela casa, pulando e subindo em todos os móveis.

Sei que tudo tem sua beleza, apesar de no momento não parecer. Acho que sentirei saudades destes dias de clausura. Escrevo este texto ainda no meio da pandemia, no dia que resolvemos fazer nossa cápsula do tempo para contar pra você aí do futuro como sobrevivemos ao coronavírus e a todo o resto.

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