Até eu encontrar você
Páginas de calendário viraram folha rascunho, já que vivíamos num ontem que insistia em se repetir. Planos voltaram a pegar poeira no fundo da gaveta. Quando celebramos aqueles dois risquinhos que apareceram em pleno feriado, o mundo lá fora não andava bem das pernas, filha. As pessoas chamam de momento histórico. Foi uma época […]
Páginas de calendário viraram folha rascunho, já que vivíamos num ontem que insistia em se repetir. Planos voltaram a pegar poeira no fundo da gaveta.
Quando celebramos aqueles dois risquinhos que apareceram em pleno feriado, o mundo lá fora não andava bem das pernas, filha. As pessoas chamam de momento histórico.
Foi uma época em que não podíamos mais dividir brigadeiro de colher com os amigos nem tomar cerveja no bico da garrafa. Nossas mãos passaram a ficar cada vez mais secas, haja creme hidratante!
Pelo lado bom, não tínhamos mais que lidar com as conversas rasas nos elevadores. Muita gente descobriu um novo talento, a maioria virou padeiro ou confeiteiro (incluindo seus pais). Isso explica porque as vezes faltava ovo e farinha nas prateleiras do mercado.
As pessoas estocaram tudo o que achavam importante e essencial, como papel higiênico, para depois se darem conta que o que fazia falta mesmo não se podia comprar.
Sirenes tocavam a nossa volta com mais frequência. Muita gente perdeu gente sem poder se despedir. Só ficou o vazio e as lembranças. Seu pai foi um desses. Ao mesmo tempo a vida renasceu em muitos lares. Você é uma delas.
Super-heróis trocaram suas capas por roupa de astronauta e suas noites por dias intermináveis.
Casais passaram a se redescobrir. Alguns notavam apenas a toalha molhada em cima da cama, já outros, o sabor do tempero no simples almoço feito com amor. Pros que se gostam de verdade, filha, foram meses de lua de mel.
Cartazes de boas-vindas tiveram de ser guardados junto a espera ansiosa de abraços carregados de saudade. Alguns se arrependeram de ter adiado o café na casa da avó ou a cerveja com os amigos. Muitas pessoas se aproximaram de novo, mesmo longe.
Casa virou sinônimo de restaurante, cinema, academia, escritório. Reuniões aconteciam atrás de uma simples tela, que volta e meia travava. Para ir ao trabalho bastava colocar uma roupa bonita da cintura pra cima.
Florescer
Casa também virou escola, castelo de princesa, atelier de artista e laboratório de ciências. Pais tiveram que reaprender matemática e resgatar a criança adormecida que nem lembravam mais que os habitava.
Quem tinha seu próprio pedacinho de jardim era rei, mas sortudo mesmo era quem tinha cachorro: além da fiel companhia, tinha passe livre para dar a volta na quadra.
Sair na rua era crime passível de multa, dar abraços era sentença de morte. As pessoas começaram a se comunicar através do olhar.
A primavera passou a habitar sacadas. Estas também se tornaram praia, palco e relógio. Sons de buzina foram substituídos por canto de pássaros.
Páginas de calendário viraram folha rascunho, já que vivíamos num ontem que insistia em se repetir. Planos voltaram a pegar poeira no fundo da gaveta.
Cada um expressava a sua dor de uma forma. Sua mãe, como muitas outras pessoas, encontrou refúgio nas palavras. Essa que de tão forte e sincera encontrou lar nos outros. Ela me ajudou a resistir, até eu encontrar você.
Com você, filha, a dor virou esperança de que dias melhores sempre virão.
TEXTO DA LEITORA: Munike Ávila | [email protected]