Acordar envolve mais do que abrir os olhos
É muito difícil acordar da forma como fazemos todos os dias. E ainda assim continuamos acordando, dia após dia
É muito difícil acordar da forma como fazemos todos os dias. E ainda assim continuamos acordando, dia após dia
ACORDAR — 1) “Despertar”, do lat. *acorritare , de ad + *coritare , por sua vez de *co -j-oritare , frequentativo de oriri, “leventar-se, etc.”. (V. Buescu). 2) “Concordar”, do lat. accordare , por substituição do prefixo de concordare , “estar de acordo”, por sua vez de con -f-cordare, de cor, cordis, “coração” (“com sentimentos comuns”). 3) “Recordar”, talvez de acordar, “despertar”, isto é, “despertar a mente”, favorecido por recordar.¹
De fato, estar desperto é uma sensação rara a ser experimentada em vida. A ousadia desta minha colocação parte de um princípio muito básico e etimológico do termo exposto acima. Afinal de contas, quando podemos nos considerar finalmente acordados ou despertos?
A sutileza de nossas ações cotidianas nos condiciona a uma certa mecanização de hábitos tão caros a nossa existência, como a alimentação, o sono e os momentos de prazer. A quantidade imensa de informações a qual somos diariamente expostos nos afoga em um mar de dormência: é como se estivéssemos naquele estágio de sono ainda não tão profundo. A dormência, inocentemente, nos conduz a situações muitíssimo perigosas.
O que pode resultar deste estado de dormência? Ao fatigarmos nossos olhos para o peso de situações tão cruéis — com nós mesmos, com os outros — abrimos uma penumbra que já não nos permite identificar com a clareza necessária o contorno dos objetos, das pessoas, dos espaços. Ao banharmo-nos nas profundezas da letargia, anestesiamos o que deve ser sentido, o que deveria ser tocado, o que teria potencial de cura.
Como saber se estou adormecido? Talvez uma resposta para essa pergunta seja outra pergunta: estou me questionando o suficiente? Eu questiono até mesmo aquilo que me parece mais conveniente? Grandes dúvidas concebem alguma resposta.
O despertar
Despertar, inegavelmente, é intranquilo, incômodo e até mesmo assustador em determinados níveis. Veja só o que aconteceu no despertar de Gregor Samsa; quem pensa que basta abrir os olhos está terrivelmente enganado.
Despertar envolve mais que isso: é sobre sentir o desagradável aborrecimento da luz penetrando os globos oculares; é mover o corpo enrijecido e tão acostumado àquela posição aos poucos; sentir o ácido estomacal pedindo por abastecimento; é estar sedendo por algo a ser sentido nas papilas gustativas.
É muito difícil acordar da forma como fazemos todos os dias. E ainda assim continuamos acordando, dia após dia. Despertar é duríssimo, menos doloroso quando acontece espontaneamente, para aqueles que têm sorte. Para os que têm menos, os ruídos traumáticos de despertadores promovem o mesmo serviço.
Algumas pessoas colocam os relógios em função soneca. Algumas pessoas é provável que nunca despertem.