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Sonhos são portais de acesso a quem somos de verdade
Jr. Korpa (Unsplash) Sonhos produzem memórias, que produzem ação (Foto: Bruce Christianson/ Unsplash)
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É noite no quarto sem janelas. Todas as portas estão trancadas e a falta de ar atravanca a garganta. Em meio ao breu, uma saída em forma de voz anuncia: “Sheyla, conte uma história e a chave aparecerá”.

“Então, eu invento um relato sobre o aparecimento de uma chave e ela realmente surge no meu bolso”, relembra a escritora Sheyla Smanioto, sobre um sonho que a visitou na adolescência.

“Essa chave era capaz de abrir todas as portas”, observa. Honrando a profecia, Sheyla segue fazendo dos sonhos alimento para as suas narrativas.

“Trata-se de procurar um portal no sonho e, acordada, habitá-lo. Se você dedicar seu tempo a entendê-los, universos inteiros se revelam por meio dos sonhos. Eu os uso como portais para escrever meus livros”, diz a autora de Desenterro (Record) e Meu Corpo Ainda Quente (Nós).

Unir sonho e criação aproxima sua obra dos leitores, acredita Sheyla. “Como um sonho, um livro também deve ter a capacidade de nos transportar para diferentes lugares – internos e externos”, compara a autora.

“Criar a partir dos sonhos é costurar um sonho público, feito para a humanidade sonhar.” Pois criar novas maneiras de ver a nós mesmos e ao que nos rodeia é a grande chave das misteriosas imagens que nos atravessam a cada noite. Essa espécie de portal abre em nós uma trilha rumo ao inconsciente, uma parte escondida, mas que influencia nossas atitudes.

Para que serve o sonho?

“O sonho pede para você se olhar de novo diante da sua infância, da sua amiga, de um animal ou de um lugar. Ele pode te fazer voar para se ver sob outra perspectiva. E dá outras imagens, ruelas, saídas”, diz a psicóloga junguiana Eliane Berenice Luconi.

Na visão do psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung, o sonho tem uma função compensatória, de complementar aquilo que pensamos que somos. Pessoas, objetos, cenários e sentimentos seriam representações do que nos falta ou do que não reconhecemos em nosso íntimo.

“Se o sonho mostra uma casa mal-assombrada, um quarto escuro, devo buscar esse lugar em mim. E questionar, por exemplo, que lugar dentro de mim está abandonado ou que não quero ver”, indica Eliane.

Investigar o assunto principal do sonho e questionar como ele se insere (ou se ausenta) na vida desperta é uma forma de se aproximar dele.

Iluminar nossos pontos ocultos amplia a consciência sobre quem somos de verdade. E nos ajuda a imaginar como caminhar de volta à essência. É por isso que, às vezes, um sonho se repete tanto.

“Temas recorrentes continuam acontecendo até o sonhador se aproximar do assunto e se dispor a cumprir a tarefa pedida”, afirma a psicóloga. 

sonhos são portais Sonhos são portais que nos conectam com a nossa mais íntima essência, e são essenciais na transformação da realidade nos momentos de vigília (Foto: Jr. Korpa/Unsplash)

Sonhos são cartas a nós mesmos

Os sonhos podem, inclusive, indicar propostas bastante práticas, como uma mudança de atitude, de casa, de trabalho e de relação.

“É preciso levar a vida ao encontro desse sonho, que, por si só, não realiza, mas mostra caminhos possíveis”, observa Eliane.

No audiobook Beginner’s Guide to Dream Interpretation (“Guia de Interpretação de Sonhos para Iniciantes”, em português), a psicóloga e escritora norte-americana Clarissa Pinkola Estés cita o caso de uma paciente que sonhava com uma voz pedindo a ela que abrisse uma porta, mas a sonhadora se negava.

Acordada, a mulher mantinha trancado dentro de si o sonho de cursar uma faculdade. Ela se achava velha demais para isso e julgava ruim ter de se afastar da família. O sonho insistiu até que ela cedesse ao próprio destino.

Clarissa vê o sonho como uma “carta de casa”. Se não a lemos, a correspondência volta e o remetente a reenvia até que seja recebida e compreendida.

Sua leitura nos permite chegar cada vez mais perto da nossa potência, como uma raiz que se expande no fundo da terra e ergue tronco e galhos, balançando seus frutos no ar.

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Sonhando futuros no coletivo

A função onírica de entregar mensagens e alterar rotas acompanha a humanidade há milênios. Ela atravessou o Paleolítico e o Neolítico até as Idades Antiga e Média.

Mas a nossa sociedade, onde produzir é a lei e dormir é perda de tempo, fechou as portas para o sonhar. Tomar decisões coletivas com base nas visões noturnas, apesar de ser comum em outros tempos e povos, parece beirar a insanidade na visão racionalista e mercantilista que domina o Ocidente hoje.

“A partir das Grandes Navegações, nos últimos 500 anos, o sonho como um farol para o futuro é trocado por uma instância técnica, racionalista e científica – que também é um farol para o futuro, mas menos integrativo e intuitivo.”

Assim explica o neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho, obra referência sobre o tema.

“Isso faz com que sejamos muito capazes de transformar a realidade, mas que tenhamos pouca capacidade de imaginar o futuro e as consequências dos nossos atos.”

sonhos são portais Nos últimos séculos, o colonialismo reforçou a ilusão de que sonhos são inúteis, levando a sociedade a buscar alta eficiência no esgotamento de recursos naturais (Foto: Jr. Korpa/Unsplash)

Os sonhos e a ciência

O abandono do sonho seria uma das causas da grande contradição que vivemos no mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo em que atingimos uma grande capacidade tecnológica, nos protegendo dos perigos naturais e produzindo alimentos em abundância, caminhamos em um mundo de escassez e crises.

“Se você não fala sobre os sonhos com a família, com os amigos, no trabalho ou na escola; se eles não são usados para tomar decisão nenhuma, as pessoas param de lembrar que sonham”, diz Sidarta. E deixam de sonhar novas saídas.

Costurando a ciência e o mundo simbólico em seu livro, Sidarta defende que devemos reconciliar sonho e vigília. Só assim seremos mais completos – como pessoas e como coletivo.

“Os sonhos tratam do que não está sendo visto, e a ciência é o contrário: mede e estuda o que está lá. São perspectivas complementares”, diz.

Prova dessa poderosa união é a tabela periódica, que veio ao químico russo Dmitri Mendeleev em um sonho. “Já fizemos a parte mais difícil, que é desenvolver a ciência para ter abundância. Agora, o que a gente precisa é de expansão de consciência”, defende Sidarta. “Isso só vai vir por meio do sonho e da preocupação com o coletivo.”

Dicas para sonhar mais

Muita gente acha que não sonha, mas isso é neurologicamente improvável, garante Sidarta. O que acontece é que dormir olhando telas, acordar com o despertador apitando, entre outros fatores de uma vida agitada, faz com que nos esqueçamos do que sonhamos.

Mas o sonho está acessível para todos e é a maneira mais fácil de acessar o inconsciente. “É tão natural quanto se alimentar e respirar. Mas é preciso haver permissão e disponibilidade”, recomenda o neurocientista.

Por isso, durma em um horário razoável: entre 20h e meia-noite. “A melatonina é alta durante a noite, depois baixa e sobe o cortisol. Se você quer dormir quando a melatonina está caindo e o cortisol aumentando, está dormindo na hora errada.”

O próximo passo é deixar de lado aparelhos eletrônicos como celular, TV e computador pelo menos uma hora antes de ir para cama.

Também evite praticar exercícios físicos, comer e beber álcool em demasia perto do horário de sono. Procure criar um ambiente silencioso, escuro e com uma temperatura agradável para se entregar confortavelmente ao oráculo da noite.

A saudável prática de registar os sonhos

Sonhos são portais Registrar os sonhos é uma ótima tarefa para pessoas interessadas em aprofundar seus conhecimentos sobre elas mesmas (Foto: Hannah Jacobson/Unsplash)

Mas, antes disso, firme sua intenção: “Vou sonhar, lembrar e registrar”. Ao despertar, fique em silêncio e procure não se mexer muito.

Só assim você adia a chegada da noradrenalina, um neurotransmissor que o cérebro utiliza para prestar atenção nas coisas, e que está praticamente ausente no “sono REM”, período em que os sonhos são abundantes.

Se você levanta já fazendo algo, o cérebro começa a se encher de noradrenalina, soterrando as imagens sonhadas. Depois de resgatar alguns elementos do sonho, puxe um caderno e uma caneta deixados ao lado da cama e escreva.

Mesmo que se lembre de apenas uma palavra ou sensação. Um único elemento pode puxar as memórias oníricas, desvelando uma cena após a outra.

Se não lembrar de nada ou algum detalhe importante escapar, siga uma dica da Sheyla Smanioto. Recapitule a noite anterior. Uma reconstituição detalhada distrai a ansiedade de agarrar o sonho pelo braço e faz com que ele pule no seu colo por livre e espontânea vontade.

O hábito saudável de falar dos sonhos

Anotando os sonhos toda manhã, a tendência é de se lembrar cada vez mais e com mais detalhes. Durante o dia, a dica é fazer do sonho, assunto. Converse sobre ele com as pessoas próximas e na psicoterapia.

E desdobre o que escreveu fazendo um desenho ou cantarolando algo que remeta a ele. Releia um conjunto de sonhos (da última semana, por exemplo) e anote separadamente aquilo que se repete.

Deixe os dicionários de sonhos de lado. Só você poderá dizer o que uma torre ou um cachorro representam na sua história.

Mesmo que você não chegue a uma conclusão, esse trabalho atencioso já traz conexão e autoconhecimento. “Os sonhos devem ser vistos como um amigo. Uma pessoa para quem você abre a porta e com quem se senta para conversar”, diz Eliane.

Somado a isso, também é recomendado se atentar aos sentimentos, cultivando boas doses de introspecção e vazio no dia a dia. Estar perto do seu interior, de como ele se expressa, e ter espaço dentro para imaginar abrem lugares em nós onde o sonho pode habitar.

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MARTINA MEDINA é jornalista e registra seus sonhos a cada manhã. Algumas ideias para este texto vieram deles.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 231 da Vida Simples

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