Observar é preciso
Já se vão dez dias que não ponho os pés em terra firme. Zarpei de Fiji com uma previsão metereológica propícia e aproei rumo à Austrália. Meus dias são de observação e atenção às necessidades básicas de sobrevivência. Durmo e me alimento, mesmo sem fome ou sono. Não tenho como prever quando minha atenção será […]
Já se vão dez dias que não ponho os pés em terra firme. Zarpei de Fiji com uma previsão metereológica propícia e aproei rumo à Austrália. Meus dias são de observação e atenção às necessidades básicas de sobrevivência. Durmo e me alimento, mesmo sem fome ou sono. Não tenho como prever quando minha atenção será integralmente necessária. A rotina é caseira. Escolho as frutas maduras nas redes de mantimento, cozinho e lavo. Controlo o consumo de água doce e de combustível e ajusto as velas. O olho fica nas nuvens e no barômetro. Com o telefone satélite, amaino a saudade das minhas moças. Assim como preparo o barco para ser autossuficiente pelas semanas que posso ficar longe de terra, também me preparo. Ioga, meditação e exercícios me põem em estado de atenção. E isso me ajuda a silenciar os diálogos internos improdutivos e mesquinhos e seguir em frente.
Na cama, sem conseguir dormir, me veio uma luz. No mar não há técnicos, especialistas, médicos, professores e nem o Google. Não há para quem perguntar. É preciso buscar as respostas sozinho. A primeira vez que me dei conta de como tenho o hábito de perguntar ao invés de tentar deduzir a resposta foi ao ler a biografia do Nelson Mandela. Ele conta, estarrecido, sobre o momento em que percebeu esta diferença entre a cultura tribal onde cresceu e a cultura branca urbana, onde as crianças não observam nem aprendem a deduzir, mas perguntam, o tempo todo.
Nestes dias de silêncio me dou conta de que, da mesma forma em que é impossível acordar alguém que finge dormir, é impossível aprender algo que se imagina já saber. O pensamento me veio do reconhecimento de como me sinto um amador, apesar dos dez anos de mar. O lado positivo deste constante estranhamento é que sigo absorvendo. Na cultura ocidental, perguntamos sem parar, mesmo quando somos capazes de deduzir. Seguimos o caminho mais fácil. Perguntamos! Resta saber se aprendemos algo com respostas fáceis. É um pouco a diferença entre sentar na poltrona da sala e ver um documentário sobre o Pacífico Sul e navegar por ele.
Não dá para desligar o controle remoto na hora que o sono aperta. Os sabores, entretanto, são tão distantes quanto os riscos. Vivemos em um sistema que não procura educar, mas que nos leva a delegar a resposta ao outro, sem capacidade dedutiva e questionadora. Sinto que o selvagem me treina nesta desobediência civil de Mandela. Busco novas perguntas, não respostas.
LUCAS TAUIL DE FREITAS é casado com Sandra Chemin e pai de Júlia e Clara. A família vive no veleiro Santa Paz .
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