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O quarto secreto
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Todos temos cantinhos, reais ou imaginários, onde guardamos pedaços de nós que não dividimos com mais ninguém. E tudo bem.

Frente à morte súbita do pai, os filhos jovens e a viúva precisaram haver-se com negócios e papeladas confusos, deixados por quem partiu imprevistamente. Nessas lides, encontraram a chave de um imóvel, desconhecido até então para eles, que pertencia ao pai. Era uma espécie de peça, nos fundos de uma floricultura, que o pai frequentava quase sempre sozinho.

A decoração do cômodo era entre desolada e acolhedora: televisão, rádio, jornais e revistas velhos, copos e cinzeiros sujos, um sofá grande, encardido e confortável. Não era um lugar destinado a vícios e desatinos, era uma peça secreta, feita para estar só. O apartamento de solteiro do pai revelou um homem desconhecido para eles, mais interessante do que supunham.

Essa cena faz parte de um seriado antigo (chamava-se A Sete Palmos ou Six Feet Under,
transmitido pelo canal HBO). Nunca a esqueci, porque a maior dificuldade de quem tem um casamento ou uma família talvez seja a falta desse tipo de espaço. Precisamos disso para guardar tesouros pouco apresentáveis, hábitos improdutivos, por vezes pouco saudáveis, velharias que nos recusamos a trocar ou descartar.

Nossa mente tem esses recantos secretos, entulhados por dentro, nosso corpo tem sede de ocasiões onde possa ficar realmente à vontade. Quando onipresente, a intimidade amorosa e familiar pode ser intimidante. Mesmo os vínculos mais verdadeiros precisam dar margem a pequenos segredos, como se fossem santuários ecológicos selvagens de si mesmo.

Se você observar sua vida, provavelmente encontrará algum lugar desse estilo. Em geral não temos possibilidade, tempo, ideia ou até a necessidade de construir um esconderijo perfeito como o daquele pai. Mas sempre haverá pelo menos uma caixa de recordações que já esquecemos, uma meia cheia de botões velhos, uma gaveta com papéis superados, uma estante com roupas puídas ou vestimentas esperando alguém que nunca seremos, uma horinha para séries e leituras idiotas ou para comer besteira, um caderno que queria ser diário ou arquivo de computador com nome esdrúxulo. Enfim, qualquer lugarzinho secreto onde guardar nossos entulhos de estimação. Também serve uma ilha de tempo, como o prazer de ficar acordado enquanto os outros dormem.

O que omitimos dos seres queridos não são segredos picantes ou fantasias perversas. É só um acervo de coisas bobas, tudo aquilo que em nós se assemelha a pilhas de jornais velhos. Somente ali verdadeiramente descansamos. Seja pequeno ou grande, seja real ou imaginário, nunca permita que descubram o paradeiro do seu quartinho. Mas não se envergonhe se algum dia um filho, já crescido, receber a chave – ele vai gostar de conhecer essa identidade secreta.

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