Minha avó fazia: a culinária como forma de afeto
Veja como a relação com nossos antepassados na culinária nos ajuda também a moldar a forma como vivemos e as memórias que vão nos acompanhar
“Esta semana foi muito louca, vó. Começamos a entregar comida na casa das pessoas. No primeiro dia tivemos um único pedido! Só um, vó. O prato foi picadinho com arroz maluco! Eu fico imaginando você dizendo: ‘mas que nome doido é esse?’. E sorrio. Tenho sorrido bastante para a situação que estamos vivendo. Minha equipe tem me dado muitos motivos para isso. Eu fico feliz de ver esses meninos e meninas se transformando em verdadeiros cozinheiros!”. O trecho é de uma das cartas que a prestigiada chef de culinária carioca Roberta Sudbrack escreveu ao longo da pandemia para a vó, dona Iracema, que se foi em 2018.
Como muita gente que vivia do comércio de rua, Roberta precisou fechar as portas de seu restaurante, no Rio, Sud, o pássaro verde. Mas como manter a si e a equipe sem faturar? Foi quando teve a ideia de vender quentinhas. Fácil, não foi. Mas ela aprendeu com a avó a tirar forças de onde parecia não existir nada.
As cartas amorosas de Sudbrack foram publicadas em seu perfil no Instagram. E atraiu pessoas que estavam em busca de um ninho, um local de abrigo diante das dificuldades e das dores emocionais. As cartas se transformaram, recentemente, em um livro, Um Tal Cheiro de Ambrosia – conversas com Vó Iracema (Interseção Design de Histórias). A obra foi também uma forma de a neta brindar os cem anos de Iracema, idade que faria este ano se ainda estivesse por aqui.
Sudbrack, que coleciona prêmios internacionais de culinária, aprendeu a cozinhar com essa avó. Quando pequena, gostava mais de livros de culinária do que gibis. “Minha vó cozinhava muito bem e acima de tudo era muito detalhista e exigente. Quando criança, talvez não tenha me dado conta do quanto a observação foi minha grande professora. Os gestos dela, sua concentração, capricho e muitas vezes sua braveza me inspiram até hoje na cozinha e na vida”, conta. A avó, que foi mãe – dona Iracema criou Roberta desde bebê –, nunca lhe ensinou qualquer receita. “Ela dizia que tudo era muito fácil; se feito com amor, não tinha mistério. Minha vó não me ensinou apenas a cozinhar: me ensinou a viver, e, por meio dessa vivência e observação do cotidiano, acabei aprendendo mais do que poderia imaginar. Ela foi a minha grande escola em tudo”, confessa a neta.
Foto Annid Spratt
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Nossos rastros na culinária
A relação que estabelecemos na cozinha sempre me atraiu. Escrevi um livro sobre isso, Minha Mãe Fazia* (Rocco) – de onde me inspirei para o título desta reportagem. Carrego a crença de que, ao observar o preparo de um prato, aprendemos não só sobre culinária, mas também sobre amor, confiança, paciência. Foi essa inquietação que me levou a conversar com o cineasta francês Jonas Pariente. Há cerca de sete anos, conheci seu projeto Grandmas Project, na internet. Nele, Pariente e outros filmmakers mostravam pequenos registros deles cozinhando com as avós.
O projeto nasceu de uma forma despretensiosa, há pouco mais de dez anos, quando o cineasta decidiu aproveitar o tempo com as duas avós: Memé, polonesa, e Nano, egípcia. Ambas migraram para a França em 1950. “Nunca me senti tão polonês como quando cozinhei com Memé, ou tão egípcio ao estar na cozinha com Nano”, me contou. O filme dele com a avó Nano pode ser visto do site do projeto. E é muito engraçado.
Essa é a beleza da relação que brota na cozinha: enquanto preparam o prato, surgem conversas, risadas, lembranças… E algumas gargalhadas, o que torna tudo ainda mais divertido. Para Pariente, além de incentivar essa proximidade, que nunca deveria deixar de existir, constrói-se um registro histórico importante. Os ingredientes, a forma de prepará-lo, servir, comer, diz muito sobre nós e nossos rastros.
A culinária como forma de oração
Uma das reflexões que também fiz ao longo dessas conversas é como a comida tem proximidade estreita com a escrita. Acredito que escrever tem muito mais a ver com relação do que com técnica. E foi isso que ouvi sobre a comida de Sudbrack. “Eu costumava dizer, quando era mais jovem, que cozinha era técnica e emoção na mesma proporção. Hoje em dia, acertaria essa porcentagem para um pouco de técnica e muita emoção. Tem uma coisa que acontece comigo desde que comecei a cozinhar e que me toca profundamente: não é raro as pessoas chorarem quando comem algum prato meu. Isso acontece quando estou inteira naquela receita, totalmente entregue à cozinha e sem medo de me expor. É lindo”, revela. “Procuro cultivar esse sentimento nos meus cozinheiros, porque, quando a gente consegue entrar na mesma sintonia, é que ocorrem a oração e o milagre da emoção. É algo muito visceral e que precisa de uma entrega absoluta.”
Para fechar minha conversa com Roberta, – e este texto também –, cutuco sobre um trecho do livro que me fez rir. Nele, ela conta sobre o pudim de queijo com goiabada que vó Iracema fazia questão de misturar na hora de comer (calda e pudim). Ao ouvir a colher fazendo a lambança de sabores, a neta, onde quer que estivesse na casa, gritava que não era para fazer aquilo. Mas Iracema insistia que daquela forma era mais gostoso. Questiono se a avó lhe ensinou sobre simplicidade. “Sim. Ela sempre me mostrou que não se leva nada desta vida. Que a gente deve aproveitar tudo com alegria e que quanto mais simples, mais gostoso é”, afirma Roberta, que não se importa mais que se misture calda e pudim. “Tá gôtoso!”, diz ela ao final da conversa e imitando o jeito da avó se referir ao doce. E se você, como eu, ficou com vontade de comer as delícias culinárias da vó Iracema, ao final do livro há receitas como a ambrosia e o pudim, entre outras delícias.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na Edição 250 da Vida Simples
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