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Liberte-se do ideal do amor romântico para viver o amor real
ILUSTRAÇÃO: ISTOCK Ainda vivemos um modelo de amor idealizado, que projeta no outro a capacidade de suprir nossas faltas e nos trazer felicidade
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Conversas profundas regadas a concordân­cias, tarefas da casa bem distribuídas, contas divididas em harmonia. Os sonhos, iguais. Os dois caminham de mãos dadas em todo e qualquer lugar. Impressionantemente tam­bém têm os mesmos gostos e vão aos luga­res juntos de maneira voluntária e feliz. De tão sintonizado, o casal nunca briga. Sempre se entende no olhar. E assim percorrem uma vida inteira: os filhos chegam, se vão, e eles avançam unidos até a morte. Se você sentiu vontade de suspirar ao ler essa introdução, não se reprima. O amor romântico está absolutamente entranhado no imaginário ocidental a ponto de abduzir nosso desejo.

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Por mais irracional que possa parecer, nos deixamos envolver pela fantasia do relacionamento perfeito e nos esfolamos para que ela funcione.

Só que, na experiên­cia cotidiana, o ideal romântico tem gerado mais angústia e insatisfação do que vontade de sorrir a troco de nada.

O perigo das ilusões do amor romântico

Isso não significa, de forma alguma, que amar e partilhar a vida com alguém – ou com mais de uma pessoa, no caso dos trisais e do poliamor – seja uma escolha fadada ao fracas­so.

Não mesmo. “O amor é inerente à nossa natureza e é capaz de aumentar o bem-estar”, destaca Renato Noguera, doutor em Filosofia e pesquisador das filosofias e mitologias afri­canas e indígenas, no livro Por que Amamos: O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor (Harper Collins).

Que fique claro. Não há nada errado com o sentimento, e sim com as expectativas e ilusões que projetamos so­bre o encontro amoroso.

Do paraíso, despencamos para o chão de concreto. Dói! Estupefata com o grau de an­gústia e aflição registrado em seu consultório devido às mazelas afetivas, a psicanalista Re­gina Navarro Lins dedicou cinco anos a uma robusta pesquisa sobre as origens e os des­dobramentos do amor, da Pré-História à atu­alidade.

Como surgiu a ideia do amor romântico

Suas descobertas estão reunidas em O Livro do Amor – Volumes 1 e 2 (Best Seller). Regina nos informa que o ideal do amor romântico, como construção social que é, surgiu na Eu­ropa, no século 12, como uma derivação do amor cortês.

Mas, por séculos, o ser amado se restringia ao plano do desejo irrealizável, já que as famílias decidiam com quem seus filhos se casariam.

No século 19, os casamentos enamorados ganharam um pouco mais de espaço, mas ainda eram minoria. O auge do amor romântico idealizado se deu nos anos 1940, bastante alardeado pelos fil­mes hollywoodianos.

E assim se mantém até hoje, com a ajuda das propagandas de margarina, das séries de streaming e das redes sociais.

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Ninguém completa ninguém

Mas andar de mãos dadas pela vida requer uma profunda vontade de conhecer intimamente o outro

Afinal, por que a ideia que fazemos do amor é problemática? “Um dos motivos principais é que o ideal do amor romântico carrega a ilusão de que a felicidade está ali. Naquela pessoa com a qual você vai ter um relacio­namento. Por ser uma fantasia, não condiz com a realidade”, afirma Keila Bis, psicana­lista e colunista do portal Vida Simples.

É aquela velha e insistente imagem de duas metades que se fundirão, formando um todo sem falhas. Logo, o outro, o ser mais especial da Terra, atenderá a cada uma das nossas necessidades.

Enfim, seremos com­pletos. Livres da carência e da insegurança. Seguindo esse raciocínio, quando inicia­mos um namoro, levamos toda essa carga de fantasia para o relacionamento.

Não é difícil imaginar o que acontecerá quando, com o passar do tempo, o real aparecer. “E o real somos todos nós, com nossas coisas boas e ruins, nosso lado legal e nosso lado chato, nossa beleza e nossa feiura, bonda­de e egoísmo, profundidade e superficiali­dade.”

“Junte-se a isso o cansaço, o estresse do trabalho, adoecimentos, problemas fi­nanceiros, rotina e férias. É o confronto do real com o ideal”, expõe Keila.

A vida real não permite o faz de conta

O que pode ser mais “a vida como ela é” do que dormir e acordar com a mesma pessoa, décadas após décadas? Na crueza da rotina conjugal não há espaço para faz de conta.

Por outro lado, se os amantes es­tiverem comprometidos em crescer e se transformar por meio da troca, ultrapassando frustrações e desencantos, coisas in­críveis podem ser construídas.

Se nos reco­nhecemos como seres limitados, buscando melhorias para nossas imperfeições e dificuldades, ficará mais fácil acolher o outro em suas insuficiências.

Não partilhamos os dias com um deus ou uma deusa, e sim com um ser humano. Então, flexibilizar exigên­cias e reduzir expectativas – sem jamais tolerar situações abusivas – são exercícios fundamentais para o amor vicejar.

“O amor mora justamente em nós suportarmos a al­teridade, as diferenças, em vermos o outro na sua completude, dentro das suas limita­ções”, sustenta Keila.

Como equilibrar amor romântico e individualidade

Outro ponto fundamental é o respeito à individualidade. E aqui precisamos nos equilibrar numa corda delicada. “Um rela­cionamento saudável é mais provável que aconteça quando ambos vivem sua autonomia financeira, emocional e social, o que mostra o respeito à individualidade de cada um”, afirma Marina Simas de Lima, psicólo­ga clínica especialista em Terapia de Casal e Família e em Sexualidade Humana, além de cofundadora do Instituto do Casal.

Keila faz coro. “A individualidade é crucial no sentido de cada um estar inteiro na re­lação, cuidando da própria vida, dos seus desejos, do seu mundo psíquico e emocio­nal, ao mesmo tempo que quer estar com o outro porque é gostoso, é rico, é interes­sante, dá tesão”, ela enumera.

Porém, quando o cultivo do eu descam­ba para o excessivo individualismo, pode acontecer de o casal apenas coabitar o mesmo endereço em vez de realmente des­frutar da vida a dois.

Cria-se, assim, uma fissura comprometedora. “Em relações muito focadas no individual, cada um do seu jeito, a conjugalidade fica fragiliza­da, sem conexão, intimidade e projetos em comum”, alerta Marina.

Segundo ela, bons amantes são equilibristas que sabem res­peitar a vivência do “eu” de cada um com o “nós”, fruto daquela parceria.

Já reparou como tem gente que não quer abrir mão de nada ou fazer qualquer esfor­ço para estar com o outro? Esse caso, que costuma provocar desgaste na relação, re­quer atenção.

“Aí já estamos falando de nar­cisismo, e se relacionar com pessoas muito narcisistas é pedir para não ser visto, para não ter essa preciosidade do relacionamen­to que é trocar. Eu te ofereço o meu universo e você me oferece o seu”, alerta Keila.

O amor romântico é como um grão

A partir dessa disposição mútua, mesmo relacionamentos longos vivenciam muitos términos e preciosos recomeços

Como tudo na natureza, o amor romântico também está exposto ao tempo e às suas contingên­cias. Se dependesse do nosso desejo mais sincero, preservaríamos o laço intocado numa bolha à prova de mudanças, concor­da?

Assim nos blindaríamos contra o desa­mor. Porém, viver no medo do fim é se apri­sionar na angústia da perda, do abandono ou da rejeição. Sim, amores acabam, mas também renascem.

Dói deixar uma fase para trás, um jeito de ser e de se reconhecer, mas é necessá­rio para que ambos se desenvolvam. Os namorados precisam deixar que os com­panheiros assumam suas posições e, pos­teriormente, se for o caso, o pai e a mãe dos filhos gerados.

Não serão os mesmos que sempre foram. Da mesma forma, os dese­jos variam, os sonhos mudam de direção, as personalidades ganham novos matizes, a vida com suas intempéries vai deixando marcas na alma de cada um.

Será que deu errado, mesmo?

Porém, mes­mo modificados num aspecto ou em outro, o casal pode se afastar, se aproximar, se re­encontrar inúmeras vezes em sua história.

“Duas pessoas nunca são permanentemen­te iguais e isso pode criar no mesmo par novos amores”, escreveu Clarice Lispector. Quanto mais natural for esse processo de fluxo e refluxo, menor será o sofrimento.

“De acordo com a fase da vida, idade, per­sonalidade e experiências vividas, estabe­lecemos um padrão relacional predomi­nante. No entanto, no decorrer da nossa jornada, de acordo com as novas deman­das, desejos, propósitos e expectativas, tendemos a atualizar, reescrever e ressig­nificar nossas relações”, esclarece Marina.

Claro que essas transições podem acor­dar muitos fantasmas: medo, resistência, frustração e estresse. Contudo, o que advi­rá dessa depuração pode ser extremamen­te recompensador.

“Nos tornamos mais ricos, mais interessantes, mais saudáveis. Nós precisamos nos fertilizar com o novo, e isso acaba por deixar o relacionamento mais vivo. Na mesmice, ninguém cresce”, defende Keila.

O desafio de manter o amor se movimentando

Relacionar-se com os pés no chão e o co­ração bem ajustado no peito é ir ajeitando coisinha atrás de coisinha enquanto hou­ver vontade de caminhar junto, reparando descuidos e reinventando olhares.

Sim, é trabalhoso. Às vezes, por demais desafia­dor. “Lavrar o território afetivo é cotidiano trabalho para toda a vida. Mas o aprendiza­do do amor não é mesmo tarefa para pre­guiçosos nem distraídos”, disse certa vez o psiquiatra Flávio Gikovate (1943-2016).

Por que compensa? Porque sem o espe­lho do outro não aprofundamos nossa ex­periência humana, que tem tudo para ser imensa como o espectro do amor.

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RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista e entusiasta dos amores lúcidos e atentos aos movimentos da vida.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 239 da Vida Simples

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