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Idiota não
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As travessias oceânicas sulcam rotas em mim, tanto quanto nos mares, riscados pela quilha do Santa Paz. Nas leiras abertas, semeio vagalumes, fagulhas que coleto pelas andanças. Nas horas de silêncio no convés, algumas alumiam meu peito. Nos últimos meses, em que velejei entre Fiji e Austrália, fui tomado pelo tema da ingenuidade. A cada milha navegada para oeste, a opção por um olhar inocente sobre a realidade, os povos e os locais por onde passei descortinavam novas perspectivas. Se o combustível para as epifanias surgia das experiências com a gente de Fiji, seus hábitos e costumes, as faíscas vinham das leituras de O Idiota, de Dostoiévski, Duna, de Frank Herbert, e do texto ?The Unfamiliar Familiar?, do poeta inglês Henry Shukman, sobre desfamiliarizar-se. Em Fiji, vivi um pêndulo de paradoxo: via-me, em alguns instantes, perplexo com demonstrações extra ordinárias de generosidade e simpatia e, no outro, pasmo com uma baderna burocrática e o desrespeito aos direitos do consumidor por parte das companhias aéreas e de telefonia. Fomos recebidos nas vilas mais remotas, em refeições fartas e incrível desprendimento. O esforço de observar e aceitar a realidade sem julgamento me permitiu desenvolver uma paciência de Jó do outro lado do pêndulo. Estimo que precisei de cerca de 50 ligações para remarcar os voos das meninas. Sustentei uma elegância surpreendente. Agi como se o desrespeito não fosse comigo. Não era. Tivemos um sem fim de gastos abusivos. Deixei o país com o orçamento rasgado, mas sem vestir a fantasia de vítima. Assim é nos rincões: a corrupção e o abuso econômico escorrem para a periferia do mundo. Fiji acaba de sair de um golpe de estado, mais um que assola o planeta sem qualquer reação das Nações Unidas.

Muitas das nuances de observar a realidade livre de expectativas ou ideias pré-concebidas ainda me escapam, mas percebi que aproximar-me de um problema com o mínimo de respostas prontas apresenta ângulos e aberturas inesperados. Um olhar arejado permite que a realidade nos atinja um pouco como a poesia e nos leva a perceber algo conhecido sob uma nova ótica. O príncipe Míchkin, de O Idiota, me voltava todo tempo. Idiota não, ingênuo por escolha. Com menos julgamento, os enredos ganham uma luz diferente. As sombras ficam menos tenebrosas e mais aceitas. Aqui me refiro às minhas sombras, não às dos demais. O primeiro julgamento a cessar é aquele em que o réu sou eu.

LUCAS TAUIL DE FREITAS é casado com Sandra Chemin e pai de Júlia e Clara. A família vive no veleiro Santa Paz.

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