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Entenda o que é culpa e saiba como ressignificar esse sentimento
(ILUSTRAÇÃO: TIAGO GOUVÊA) Entender o que está por trás da culpa
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Sentimos culpa por tudo e a todo momen­to, tanto por aquilo que fizemos no passado como pelo que não fizemos ou, ainda, pelo que gostaríamos de fazer, mas não podere­mos devido a alguma circunstância que foge ao nosso alcance.

Nos culpamos por coisas corriqueiras, como não termos olhado a pre­visão do tempo e sermos surpreendidos pela chuva no dia do passeio há muito agendado.

Nos culpamos por ter ido dormir tarde ou por termos acordado cedo demais; por termos deixado as crianças comerem alguma tran­queira.

Também por termos pagado mais caro do que o habitual em uma peça de roupa; ou por não ter­mos o tempo necessário para realizar todas as demandas.

Assim como nos culpamos por não termos feito um curso que, no momento, seria muito útil para nossa carreira profissio­nal; ou por não termos juntado dinheiro.

Mas também, e tantas vezes, nos culpamos por acreditar que não somos bons o suficien­te; pelos nossos pensamentos e vontades; e até pela atitude do outro, como se ela fosse nossa responsabilidade.

Ou ainda, em casos de maior gravidade, assumimos a culpa mes­mo quando somos as vítimas da história.

Afinal, o que é a culpa?

De forma breve, podemos entender a culpa a partir do fracasso em relação à projeção de algo ou de alguém, quando não atingimos as expectativas criadas.

Claro que esse senti­mento não deve ser extirpado por completo, uma vez que existe para que possamos perce­ber o mais rápido possível onde o erro está e como corrigi-lo.

“A culpa é benéfica à medida que você passa por ela, compreende o que está sentindo e reflete sobre o que já passou pela sua vida e provocou esse sentimento. E assim consegue tirar aprendizados disso”, co­menta a psicóloga clínica Denise Monteiro.

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Quando a culpa causa danos

Os danos, todavia, começam quando a pessoa não consegue sair dessa faixa vibracional cul­posa e passa o tempo todo apenas remoendo situações e dando permissão ao sofrimento.

Como consequência, entra em ação a per­turbação psicossomática, resultando em pro­blemas físicos. Como dor em partes do corpo, aler­gias da pele, problemas no sistema digestivo, dificuldades para dormir, mau humor, ansiedade e até depressão, no médio e longo prazo.

O que se observa, portanto, é o agravamento do sentimento e a paralisia da vida. É hora de buscar ajuda.

“Um sinal muito importante é quando a pessoa começa a constatar que a todo instante está relembrando aquela ação ou não ação que gerou a culpa. E, em vários momentos do dia, vem um gatilho que remete à situação novamente. Quando consegue identificar os gatilhos, já é um ponto positivo. Mas muitas têm grande di­ficuldade de sair do looping”, enfatiza.

As origens do conceito da culpa

O que é culpa: entenda o que está por trás da culpa (ilustração de uma maçã vermelha com mordidas do lado direito) Não remoer situações que trazem sofrimento

A origem do conceito da culpa é milenar. Os ocidentais o relacionam mais à tradi­ção judaico-cristã, que o construiu sofisti­cadamente, como pode ser observado em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.

Mas en­tre os orientais a culpa se instala quando uma pessoa não honra ou não homenageia corretamente os seus antepassados. Assim como ela também está presente no concei­to da Roda de Samsara, atribuído aos hin­dus, e nas tradições de tribos primitivas.

Nos restringindo ao Ocidente, precisa­mos remontar ao mito de Eva, que se tor­na culpada e devedora quando, por sua curiosidade e desobediência, “faz” todo ser humano perder o direito ao paraíso.

Carga da culpa atinge mais as mulheres

“À mulher caberia a culpa pelas punições do divino impostas à humanidade como um todo. E, assim, sempre lhe coube uma dupla punição: a existência limitada e a humanidade limitada”, escreve a doutora em Antropologia Cristina Maria Buarque no artigo A culpa como matéria de des­construção do feminismo.

Na esteira desse pensamento, a psicóloga Maíra Scombatti, cujo trabalho de atendimento é focado em casais e famílias, diz concordar que uma leitura rasa dos mitos, como o de Eva, pela ótica do patriarcal e do machismo estrutu­ral, e os dogmas religiosos entregam essa culpa às mulheres.

“Por isso, entender que essa culpa vai sendo construída pode aju­dar a desconstruí-la. Claro que a partir do desejo de desconstrução, da mulher dizer ‘não, não concordo que sou culpada por­que nasci mulher ou porque tenho filhas’. E esse desejo pode ser fortalecido em redes e grupos de reflexão”, aponta.

Inclusive, muitos consideram que apenas as mães são responsáveis pela educação dos filhos, eximindo os pais desse papel. A mu­lher mãe também se culpa quando, diante de tantas tarefas profissionais e na casa, não consegue dar aos filhos a atenção que gosta­ria.

Como desconstruir a culpa feminina

Equacionar esse sentimento em meio à rotina do dia a dia sem flagelar a si própria deve começar, como atesta Maíra, justamen­te pela não aceitação dessa narrativa de que a mãe é a única responsável.

“O cuidado dos filhos precisa ser compartilhado; é impossí­vel uma pessoa sozinha dar conta de tantos papéis e funções. Uma coisa é não dar conta sozinha e se cobrar por isso. Outra é numa relação parental compartilhada, que pode ser mãe e pai, mãe e mãe, mãe e avó, todas as estruturas possíveis de cuidado.”

Portanto, ser leve diante disso, educando e estando presente de forma harmônica, sau­dável e, claro, sem culpa, é possível e neces­sário. Mas sem a ilusão de que tudo são flo­res.

“A parentalidade vai ter momentos mais densos, mais pesados, e fazer isso com rede de apoio, com trocas, parcerias, é mais leve, pois se divide essa carga, seja a mental, a física e tudo o que envolve esses cuidados”, diz Maíra, mãe do Theo e do Ian.

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Troque o termo “culpa” por “responsabillidade”

O que é culpa: entenda o que está por trás da culpa (ilustração de uma maçã toda modida, com sementes pretas à mostra) Olhar para os sentimentos e cuidar deles com gentileza

Não nascemos para sermos infelizes nem para carregar culpas através dos milênios. Assim, não se culpe nem se torture pelo que aconteceu ou pelo que não aconteceu.

Se não foi como poderia ter sido, retire da experiência os melhores aprendizados e os aplique nas escolhas e decisões que venha a tomar.

É claro que ler essas sentenças é muito mais fácil do que praticá-las, mas de­vemos tentar. Para começar, podemos subs­tituir a palavra culpa por responsabilidade.

Assim, somos responsáveis pelas nossas ações, nos colocando vigilantes diante de­las. Assim, eliminamos a culpa por algo que não está conectado às nossas ações e assu­mimos a parcela que realmente nos cabe.

O cuidado de não contaminar as crianças com a culpa

Além disso, precisamos estar atentos para não transferir o sentimento para as crianças, já que se sabe que a culpa pode estar relacionada também ao que uma pes­soa aprendeu ou ouviu nos seus primeiros anos de vida, quando mães, pais e edu­cadores criticam ou dão bronca em cada “deslize” cometido por aquele pequeno ser.

Por exemplo, quando culpam a criança por ela ter quebrado uma louça que a família tinha há bastante tempo ou por ter corta­do uma roupa, ou até por atrapalhar a inti­midade do casal.

“Se algo quebrou, a gente vai buscar consertar, se a roupa rasgou, a gente busca costurar, se tem limite de privacidade que precisa ser reconhecido, isso também pode ser expresso e construído junto com as crianças. O difícil é a gente, adultos, sair internamente desse lugar de punição e recompensa e também se aco­lher”, diz a psicóloga.

Perdoar para restaurar a vida plena, sem culpa

Peça perdão, perdoe ao outro, mas, espe­cialmente, perdoe a si mesmo. Eis uma ação a ser usada como mantra. Quem reforça esse aspecto é a terapeuta kármica Cynthia de Oliveira.

Ela conta que faz muitos pro­cessos de regressão a vidas passadas em seus clientes e há muito percebe que gran­des traumas e bloqueios estão sempre re­lacionados à culpa. Para ela, a única forma de se libertar desse sentimento é por meio do perdão, especialmente o autoperdão.

“Outra coisa importante é identificar quais situações geraram essa culpa e quais sen­timentos estão atrelados a ela. Descobrir isso é fruto de um processo interno, e a me­ditação é uma ferramenta que pode ajudar nesse sentido. Conecte-se consigo mesmo e procure identificar de forma racional a ori­gem do sentimento”, observa.

Conte a sua história de outra forma

Denise compartilha a dica de que cada um, diante de uma culpa que insiste em fi­car, ressignifique o acontecimento.

Ela su­gere escrever uma carta, sem destiná-la a ninguém. E, ali, usar as linhas como forma de reviver determinada situação, anotando tudo o que gostaria que tivesse sido dito ou fazendo um pedido de perdão.

Já Maí­ra reforça que é preciso perceber quais os outros sentimentos acoplados à culpa, aba­fados por ela e necessitados de cuidado. “A culpa vem como uma tampa de uma panela de pressão. O caminho é tirar essa tampa e olhar o que está lá dentro fervendo, para que os cuidados aconteçam.”

Por fim, vale se inspirar em um trecho da crônica Mulheres possíveis, de Martha Me­deiros: “Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero. Pois inclua na sua lista a Culpa Zero. Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apon­tou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo para os ou­tros”.

Assim, seja o seu próprio modelo, não o ideal, mas aquele que é possível no agora.

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GUSTAVO RANIERI é jornalista e se orgulha de ter se perdoado completamente por tudo “que podia ter sido e que não foi”, como escreveu Manuel Bandeira.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 246 da Vida Simples

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