Vamos brincar?
Entender como fazer isso, já adulto, é essencial para ter uma rotina mais leve, presente e mais criativa. Brincar, afinal, não é só para criança.
Entender como fazer isso, já adulto, é essencial para ter uma rotina mais leve, presente e mais criativa. Brincar, afinal, não é só para criança.
Ao som dos Novos Baianos, as crianças brincavam de ser artistas. Em um ateliê com tintas no chão, elas reproduziam sisudas obras de arte clássica. O olhar de cada uma delas trazia liberdade e sentimento, sem preocupação com certo ou errado. Em meio a tudo isso, uma cena chamou a minha atenção. Num canto da sala, duas meninas se divertiam com as cores e as formas que nasciam com o cair das tintas no papel. Enquanto isso, o pai delas também brincava, com o celular. Ele franzia a testa, coçava a barba. Mal sabia que uma oportunidade instantânea de conexão com o mundo das crianças e com o brincar se esvaía a cada toque na tela eletrônica.
Pouco tempo depois, um menino maiorzinho passou pela porta do ateliê. Olhando as brincadeiras de longe, ouviu de sua mãe um “vamos embora porque estamos atrasados e isso é coisa de criança pequena”. E lá foi ele, cabisbaixo, sem poder se divertir. Será que é assim que começamos a ver a brincadeira como algo bobinho e inundamos nossa vida de seriedade e rigidez? Como podemos resgatar o espírito do brincar em nossas vidas? É sobre essa busca que vamos conversar agora.
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Brincar faz bem em diversos sentidos
No livro “Play: How it Shapes the Brain, Opens the Imagination and Invigorates the Soul” , o psiquiatra Stuart Brown explica o que é o brincar: uma atividade que fazemos apenas pela alegria de fazer, sem uma finalidade específica. Ela também reduz a consciência de nós mesmos e nos liberta do tempo, já que paramos de nos preocupar se estamos feios, estranhos ou bonitos e nos desligamos de pensamentos, ideias e preocupações. Permite, ainda, nosso potencial de improviso, pois facilita o pensar e agir fora da caixa, abrindo espaço para criatividade e insights; e, quando brincamos, não temos vontade de parar.
Além disso, segundo vários estudos científicos, brincar estimula a plasticidade cerebral, a adaptabilidade, o raciocínio lógico, a socialização, a empatia e a criatividade. Mais do que isso, é um antídoto para o estresse. “Brincar é a essência da vida, é o que faz com que ela seja possível de ser vivida”, arremata Brown.
A vida é séria e precisamos parar de brincar?
Mas, se é tão bom assim, por que deixamos de brincar quando crescemos? Foi o que perguntei para Ingrid Wiggers, doutora em educação e professora da Universidade de Brasília. Ela me explicou que o conceito do brincar é uma construção sociocultural. Com base nisso, sabemos que a vida da criança é brincar e que, ao crescer, essa atividade precisa acabar porque agora a vida é séria. “Aprendemos que brincar é coisa de criança pelos próprios adultos, porque, na nossa cultura, eles não têm espaço para brincar. À medida que crescemos, a sociedade requer menos brincadeira e mais trabalho e produção. Uma coisa vai substituindo a outra”, lamentou.
Contudo, não podemos nos esquecer de uma coisa: somos formados por interesses tanto de produção quanto de ludicidade. Dar vazão apenas ao aspecto produtivo é como construir dentro de nós uma represa sem vertedouro. Com o passar dos dias, entre regras e pendências, entre limites e reuniões, nossa condição humana de brincar vai sendo represada. Impedimos que esse potencial lúdico flua livremente. Até que chega um ponto em que a única coisa que essa represa pode fazer é explodir.
Não nos tornemos máquinas para não brincar
“Quando não experimentamos a ludicidade, nos tornamos máquinas e perdemos o sorriso, o relaxamento. O interesse apenas pelo lucro, pela ganância e pela produtividade, um dia após o outro, desemboca em doenças e em empobrecimento emocional”, alertou Ingrid. O brincar e o trabalhar não são opostos. Eles são aspectos complementares. Afinal, conforme nos ensina o psicólogo e teórico do brincar Brian Sutton-Smith na obra A Ambiguidade da Brincadeira, “o oposto do brincar não é o trabalho; o oposto do brincar é a depressão”.
Quando o brincar e o trabalhar se tornaram opostos na vida do então jornalista e executivo Rodrigo Vergara, a “ignorância alegre transformou-se em certezas e silêncios”. Contratado para trabalhar em uma área nova de uma grande empresa, aprendia e brincava como criança. E era esse olhar que tornava tudo mais leve. Porém, em determinado momento, Rodrigo achou que não poderia mais se mostrar dessa forma.
“Por eu achar que deveria saber o que não sabia, comecei a fingir que sabia. E foi aí que começou a ficar pesado porque passei a ser o que eu achava que as pessoas queriam”, contou. Sem se reconhecer no que fazia, decidiu tirar um período sabático e se dedicou a aulas de palhaço e de improvisação. “Aos poucos foi ficando claro: eu queria ajudar as pessoas a sentir aquela sensação de libertação que se repetia toda vez que eu entrava em um jogo de improvisação”, relatou.
Libertação
Por fim, a brincadeira se tornou caminho quando Rodrigo e dois amigos fundaram a empresa RIA – Improvisação Aplicada, para ajudar pessoas e empresas por meio da improvisação aplicada, do psicodrama e da cooperação. Ele conta que, nas oficinas da RIA, a palavra que mais ouve é libertação.
De acordo com ele, “As pessoas chegam aprisionadas em padrões inconscientes e em limitações autoimpostas de tanto ouvirem ‘não pode isso’, ‘não pode aquilo’. E aí a amplitude de emoções fica pequena, ela passa a ver o mundo pelo buraco da fechadura. Mas quando eu digo ‘não tem que nada, pode tudo’, aqui dentro e lá fora também, entra uma lufada de vento fresco, e a pessoa dá risada, chora, se liberta, fica cheia de vida”, conta Rodrigo.
O estado de brincadeira
Abrir-se para esse estado de brincadeira é criar espaço e distância suficientes para ver a própria vida em perspectiva. É uma postura de liberdade e total entrega a si mesmo e ao momento presente. Abandonar a rigidez e a seriedade é se permitir fazer o que gosta simplesmente pelo prazer de fazer e de estar ali. E, de quebra, se presentear com um estado de relaxamento, felicidade, concentração e criatividade. Assim fica mais fácil de ver e aceitar outros pontos de vista. A partir desse lugar, qualquer coisa pode virar brincadeira e qualquer um pode brincar. Cozinhar, ouvir música, assistir a um filme, ler um livro, caminhar pelo parque, compartilhar histórias com um amigo são formas de brincar. Tudo depende do nosso olhar.
Da mesma forma, Juliana Proserpio, designer e cofundadora do laboratório de inovação Echos, levou o brincar para o trabalho. O ponto de partida foi um curso com o psiquiatra Stuart Brown. “Fizemos dinâmicas de empatia, colaboração e experimentação. Uma das atividades era criar, a partir de uma folha de papel-alumínio, o chapéu mais louco que pudéssemos. Nesse tipo de brincadeira, há abertura da nossa mente e do nosso corpo para a criatividade. Flexibilizamos quem a gente é, o que é certo e errado”, disse.
Renda-se…
Igualmente, Tatiana Duarte, artista visual e arte-educadora do Programa Educativo do Centro Cultural Banco do Brasil, vê na arte uma forma de ajudar pessoas a saírem de suas rotinas rígidas e lineares. Ela me contou a história de uma aluna que, após muita resistência, se rendeu à aparente falta de função da brincadeira.
“No primeiro dia de aula, ela falava ‘isso não faz sentido para mim’, ‘para que fazer isso?’. E eu respondia ‘para nada’, como uma forma de provocação, porque a arte não tem que ter uma função. Isso foi tão transformador que, anos depois, essa aluna montou o próprio ateliê e pensa, agora, em levar a arte para mais e mais pessoas”, contou, orgulhosa.
A vida é um grande playground
Mas será que podemos ir além e viver em constante estado de brincadeira? Para Wellington Nogueira, ator e palhaço fundador dos Doutores da Alegria, é possível. E mais: esse é o antídoto para os problemas gerados por uma era tão vulnerável, incerta, complexa e ambígua. “O estado de brincadeira é o que chamo de jogo infinito, inspirado no livro Jogos Finitos e Infinitos, de James Carse. Você joga para que o jogo continue acontecendo. As regras vão sendo flexibilizadas para poder entrar mais jogadores e trazer mais criações”, explicou.
É como se nossa vida se transformasse em um grande playground. Nesse espaço de desafios, mas também de brincadeiras, vemos novas possibilidades, desenvolvemos habilidades, interagimos com empatia e experienciamos a vida de maneira leve. Afinal, nesse lugar, sabemos que sempre será possível cair e levantar, se machucar e se recuperar. “Ao brincar nesse playground, a mudança vira sua parceira, e você tem condições de interferir e dialogar. É um resgate de poder”, arrematou Wellington que, com base no trabalho do Doutores da Alegria em hospitais públicos brasileiros, criou a oficina Let’s Play, oferecida na The School of Life, em São Paulo, para resgatar o brincar na fase adulta.
Movimento o corpo e a alma brincando
Em outras palavras, a chave é derreter a solidez. “No sólido, as moléculas estão juntas, não há espaço. No líquido, há flexibilização. E líquido faz o quê? Flui, porque as moléculas têm espaço para brincar. E, se 70% do corpo humano é líquido, precisamos acessar essa inteligência dentro de nós e ir para o futuro com um arsenal lúdico”, finalizou ele. Brincar, portanto, é movimentar o corpo e a mente. É praticar, todos os dias, um olhar de principiante. É se expor à vida, se libertar do medo e criar espaço para que tudo em você possa fluir. E então, vamos brincar?
Daniela Pires é jornalista em Brasília, e sua brincadeira preferida é contar histórias sobre o que vê e ouve por aí no @rotadoindividuo.
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