O que aprendi ao ser mãe
Ser mãe e entender que o filho real não é aquele que idealizamos nos ajuda a amadurecer em todos os aspectos da vida
Ser mãe e entender que o filho real não é aquele que idealizamos nos ajuda a amadurecer em todos os aspectos da vida
O primeiro livro que li, quando tinha entre 6 e 7 anos de idade, foi Alice no País das Maravilhas, um presente do meu pai para a filha recém-alfabetizada. Naquela ocasião – menina que eu era -, a história parecia fazer pouco sentido, mas as letras já acenavam à minha imaginação. Eu aprenderia a ler e a inventar o mundo no lastro do afeto.
O livro fez morada sob meu travesseiro por muito tempo e as aventuras da personagem, em algum momento, saltaram das páginas para os meus sonhos. Neles, cultivei impossibilidades, até que, exatos trinta anos depois daquele primeiro livro, Alice ganhou corpo e um novo codinome: minha filha.
Ser mãe
Sua estreia no mundo foi um despropósito: minha Alice nasceu prematura extrema, com 29 semanas, 900 g e 31 cm. O corpo miúdo e frágil experimentou inúmeras picadas de agulhas já logo no início da vida, combateu cinco infecções, sendo duas generalizadas, superou hemorragias pulmonar e cerebral, buscou fôlego através dos tubos, sobreviveu a uma parada cardiorrespiratória que durou 26 minutos e resultou em um coma prolongado. Esse último episódio, o mais terrível, pendurou-me em uma interminável espera. Foi como se eu tivesse caído em um buraco que não tinha fundo, feito aquele que conheci na obra que marcou tanto a minha infância.
Uma filha prematura requer um amor maduro e, nessa matéria, eu novamente começava a ser alfabetizada. Em vigília, arrisquei enunciar as primeiras palavras, esperança, confiança, enquanto conferia, aflita, toda a aparelhagem que envolvia seu corpo. Do outro lado da incubadora, Alice respondia com luta, coragem, mas também com incerteza. Eu ponderava possibilidades e, outra vez mais, recordava-me da fábula que leva seu nome: para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve.
Luta pela vida
Foi quando, finalmente, pronunciamos o amor em uníssono e abrimos o peito para tudo o que viesse a reboque: alegria e espanto, dor e encantamento, afeto e falta. Fizemos a escolha que nos abriria a porta de saída do hospital para viver nosso encontro. Durante os 145 dias em que permaneceu na UTI neonatal, Alice apropriou-se da sua história e começou a escrever, de próprio punho, o primeiro capítulo, aquele que assumia a contramão do mundo e media o sucesso nas menores frações – centímetros, mililitros, miligramas. Aquele que vestia todas as horas de sorte, porque flertava com a morte. Aquele que esclarecia que o contrário da doença não é a saúde, mas sim o amor. Aquele cuja vida era uma promessa sussurrada no galope dos dias.
Dali em diante, vencida a busca pela sobrevivência, era a hora de virar a página, de arejar o quarto, abrir as gavetas cheirando à roupa limpa, silenciar o ambiente, acomodar o coração e ocupar-se do despretensioso e do adiado. Mas as roupas, mesmo as menores, ainda eram grandes para minha pequena Alice. E o berço, já nas primeiras horas de minha filha em casa, precisou dividir espaço com a bala de oxigênio.
Em casa
O banho também tinha suas peculiaridades e conciliava água morna e cateter nasal. As madrugadas eram palco dos vários alertas sonoros de oxigenação. O caderno registrava os programados horários das medicações. No lugar de meias, seu pé tinha, permanentemente, um sensor de monitoramento de sinais vitais. Angariou, também, um sem-número de estímulos sensoriais que disputavam sua alheia atenção. Ela permanecia quase imóvel, enquanto tudo se movia ao seu redor.
Quando, enfim, ousei ensaiar um passeio na pracinha da cidade onde moramos, Belo Horizonte, vieram as convulsões e a confirmação dos diagnósticos: paralisia cerebral e síndrome de West (epilepsia de difícil controle). Deram nome àquilo que já se apresentara a nós. Eu continuava adicionando palavras ao meu vocabulário, aprendendo a ler o mundo, agora pelas mãos de minha filha.
Rascunhar-se
As convulsões nos maltrataram. Abreviaram momentos prazerosos, inauguraram peregrinações médicas, exigiram conhecimento de bulas e interações medicamentosas, estabeleceram rotinas de exames, levaram-nos algumas vezes de volta ao hospital. Mais que isso, exigiram que percorrêssemos mais de uma dezena de alternativas terapêuticas para voltarmos ao ponto de partida, cara a cara com a impotência. É doença difícil de lidar, é sofrimento que esfola a carne. É acometimento que só se remedia com colo, abraço, amparo.
Não havendo espaço para idealizações,
fui obrigada a abraçar minhas falhas e
incompletude. Era preciso deixar aquela
versão desatualizada de mim mesma
Já a paralisia cerebral, paradoxalmente, é condição que nos impõe o movimento. Segundo a medicina, esse potencial de transformação é chamado plasticidade cerebral. No grego, plastikós é relativo às obras de barro. No latim, plasticu se refere à modelação. Mais palavras que se acrescentaram ao meu vocabulário. É isso! O cérebro de minha filha é mesmo matéria de barro que ela modela pelo desejo de explorar o que a cerca.
O resultado de sua modelagem não é estático nem palpável, tal qual uma escultura, ou um sentar-se, falar, andar. É fluido, é dinâmico e é também sutil. Às vezes, é um piscar de olhos, noutras, um estalar de lábios. Sua arte é recriar os próprios moldes de sua condição de estar aqui. Rascunhar-se. Na vontade e também no desejo, seu corpo é ensaio de uma invenção que nunca acaba.
Deliciosamente imperfeita
Não havendo espaço para idealizações, fui obrigada a abraçar também minhas falhas, minha incompletude, minha vulnerabilidade. Era preciso deixar para trás aquela versão desatualizada de mim mesma, revisar conceitos, preconceitos, redefinir minhas prioridades. Tanto mais fui me permitindo esse movimento, mais vasto o mundo se apresentava para mim, mais próxima e íntima era minha pequena Alice. Eu admirava essa filha como quem aprecia as auroras, porque, de certa forma, era isso o que ela motivava diante de mim: amanheceres.
Uma vez que essa filha se fez tão bonita e tão deliciosamente imperfeita, comecei a olhar ao redor com estranhamento. Pairava sobre nós uma expectativa pelas óbvias habilidades – sustentar a cabeça, sentar, falar, andar –, como se fossem a senha para a felicidade. Os olhares que nos atravessavam nem sempre eram amistosos, e a pena, invariavelmente, caminhava ao nosso lado pelas ruas. Durante meses, contabilizei artigos e reportagens enviados, carinhosamente, por pessoas próximas sugerindo tratamentos arrojados e diversos para a “cura da paralisia cerebral”.
Maternidade com uma causa
A insistência da abordagem não deixou dúvidas sobre onde deveriam recair minha energia e dedicação: na superação das barreiras da sociedade. Instalar rampas, garantir vagas nas escolas, nas faculdades, nas empresas, divulgar as libras e o braile, adequar instalações e pensamentos, eis os desafios. Criar condições dignas para que todas as pessoas – todas – possam viver em sua plenitude. Respeitar e, quando possível, admirar as diversas características que compõem a natureza humana. Perceber as inúmeras formas de ser e de estar no mundo e aprender com elas.
Então, eu tinha uma filha e também uma causa. Com elas, por elas, eu abraçaria o mundo. Alice havia superado o encantamento da história que lhe deu o nome. Pelas suas mãos, outros sonhos hoje habitam meu travesseiro. Não aquele da filha idealizada, eu não seria capaz de sonhar tão bonito e tão grande. Um sonho real, potente, que inevitavelmente nos arrasta a imaginar um novo lugar, um outro jeito de ler o mundo a partir da compreensão de que a maior riqueza da vida é a possibilidade de apenas ser quem se é. Acho que é esse lugar dentro da gente – de acolhimento e respeito – o tal país das maravilhas.
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