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Xénio e os gestos que surpreendem
Kenan Süleymanoğlu | Unsplash
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No conto, a seguir, as sensações de encontros com duas pessoas muito distintas se embaralham, durante o que parecia ser apenas um dia qualquer. Gestos que surpreendem são destaque na história do escritor português Didier Ferreira.

— Boa tarde,

diz-me o homem com o dedo em riste apontando para a minha mão.

— Posso?

Olho para ele estupefacto, sem saber que dizer ou fazer. Está parado diante de mim, ele em pé, eu sentado. Estamos na sala de espera da estação fluvial do Cais do Sodré, em Lisboa. Sigo para casa depois de mais um dia de trabalho. Um dia como outro qualquer.

Consegui sair da cama cedo, à hora do costume, exausto. Bebi um café de caneca. Descasquei um punhado de amendoins que mastiguei rapidamente enquanto a música tocava na sala e, na minha cabeça, a imagem dela regressava cada vez mais nítida, mais intensa, mais cheia de cor e de vida, com as pernas, a cintura, a barriga, o tronco, os olhos apaixonados e o sorriso fácil dirigidos a mim.

Um dia como outro qualquer, sim

Um dia como outro qualquer, sim. Atrás dos passos arrastados do Gabriel da casa de banho para o quarto. Eu, no seu encalço, aborrecido com a demora e ao mesmo tempo sorridente com a memória do corpo despindo-se vagarosamente dos nervos. Recordo agora, nem sei bem a que propósito, como ela sorria e pousava no chão de madeira apenas os dedos dos pés como se protegesse a planta. Ou outra coisa qualquer. Um defeito, talvez. Um desconforto, pensei, quando vi o Gabriel deitado na cama, como que abandonado, numa grande preguiça sobre os panos desarrumados, meio vestido a rigor para sairmos de casa. Irritou-me vê-lo assim, naquele estado. Por isso chamei-o,

— Gabriel!,

com voz grossa,

— não temos tempo para isso, vá lá,

porque o tempo ficava curto e, se atrasássemos, teríamos de correr um tanto para apanhar o barco. Eram seis e cinquenta e seis.

Não foi um dia como outro qualquer

Não foi um dia como outro qualquer. Ontem estivemos juntos, pela primeira vez. Fizemos um caminho bonito até nos deitarmos por uma tarde inteira. E hoje sei que estou diferente. O meu dia foi diferente. Sorri mais, muito mais. Felicitei toda a gente quando pude. Conversei alegremente. Fui colaborativo para além do habitual. Paciente. Permissivo. Fui feliz a todo o instante, mesmo quando o colega me trouxe a notícia de que viria uma inspeção avaliar o nosso trabalho. A marca que ela deixou em mim é tão forte, impressionante. E agora posta à prova por este homem, um estrangeiro, que me estende a mão para pedir muito mais do que uma moedinha. “O que queres?”, pergunto-me a mim mesmo, em silêncio, enquanto me certifico de que é verdade o que ele deseja.

São quase dezanove horas. Estou sentado na sala de espera da estação fluvial do Cais do Sodré. Aguardo o barco para Cacilhas. Mas esse homem, cuja idade não determino facilmente, entrou na sala, estendeu a mão a cada uma das pessoas sentadas. Cumprimentou-as primeiro

— boa tarde,

pediu

— uma ajuda para comer, se lhe for possível.

Já próximo de mim, notei-lhe as roupas encardidas, o saco de plástico na mão e a mochila nas costas muito velha. Os cabelos dele são de um loiro acastanhado. Os olhos azuis. A pele clara, embora manchada. A palma da mão dele é diferente da dela. Esta é áspera. Feia. Nojenta.

Não é um dia como outro qualquer

Não é um dia como outro qualquer. Se hoje as pessoas passaram por mim e eu não as vi, de tão forte que foi a marca que ela deixou em mim, este não posso ignorar. Porque abordou-me de uma forma diferente. Com modos gentis, a voz tranquila, os olhos brilhantes fixados nos meus.

— Bom dia, posso?

O estranho aponta para a garrafa de sumo de laranja que eu tenho nas mãos. Este sumo cujas laranjas eu próprio espremi, usando a máquina, ali no supermercado da estação. O sumo que paguei caro, por ser natural, saudável, ele quere-lo agora. Que é isto?

— Posso?

Hesito, por não saber o que responder. Uma moeda é um objeto que eu tiraria do bolso e transferiria para a mão suja do pedinte. Mas. Ele pede-me o meu alimento. Que eu abra mão do que é meu por direito, do que então me sacia, para ficar sem nada e ele com tudo.

— Posso beber um pouco?

Estendo-lhe a mão. O estrangeiro recebe a garrafa com uma expressão de felicidade no rosto. Bebe um gole demorado sem nunca desviar os olhos de mim. Termina. Devolve-me o objeto. E eu hesito agora temente. Não sei se bebo. Se insisto para que a leve. Se deito fora. Não sei o que fazer. Como ultrapassar o nojo e devolver os meus lábios ao gargalo da garrafa onde ele deixou uma marca de saliva? Não sei…

Eis que um indivíduo de meia idade, sentado ao meu lado desde o início da cena, puxa o catarro da garganta de um modo grotesco e audível e cospe subitamente para o chão, por pouco sobre o calçado do estranho parado diante de nós, num ato contínuo, dizendo,

— que pouca vergonha a destes estrangeiros.

Perco a cabeça. Levo a garrafa à boca. Um gole. Levanto-me energicamente. Sinto os nervos aflorarem-me à pele. Sem ponderar o meu gesto, ergo o braço direito com violência e arreio para cima do velho, quando o estrangeiro apanha-me a mão ainda no alto, diz baixinho, quase colado ao meu ouvido, as mesmas palavras que ontem ouvi da boca dela,

— és tão bom…

Estou estupefacto mirando-o pelo canto do olho. Afrouxo o braço. Ele tem-me a mão na sua. Aperta-ma carinhosamente. Tem a boca mais próxima do meu ouvido, a mão esquerda no meu ombro esquerdo. Ainda mais baixo, diz-me

— não ligues, ele não sabe por que o fez. Fala antes comigo. O meu nome é Xénio. Sabes o que significa?


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

estupefacto: grafia diferente para estupefato.

casa de banho: banheiro.

dezanove: grafia diferente para dezenove.

sumo: suco natural.

Xénio: essa vamos deixar para você descobrir, caro leitor! 😉

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples


DIDIER FERREIRA (@didier.ferreira) é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos).

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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