Você tem consciência da vida que leva?
A individualidade, o estar consciente e o livre-arbítrio nos elevam acima de todas as outras espécies. São as nossas garantias. Será?
A individualidade, o estar consciente e o livre-arbítrio nos elevam acima de todas as outras espécies. São as nossas garantias. Será?
A consciência é muito festejada como diferencial humano. Gostamos de enaltecer a nossa condição de seres conscientes. E isso é tão natural em nós que faz parte do nosso discurso do dia a dia. Quando alguém quer que reflitamos sobre estarmos ou não em falta ou erro, pede-nos: “ponha a mão na consciência”. Se queremos deixar claro que agimos com dignidade e honestidade, atestamos que temos “a consciência limpa”.
Dessa forma, fomos ensinados que, como seres racionais, as nossas ações são produtos das nossas escolhas conscientes. E mais do que isso: sabemos que é assim. Temos consciência que temos consciência. Ela nos distingue enquanto espécie.
Animal x humano
Fazemos tudo o que os outros animais fazem. Nascemos, procuramos parceiros sexuais, nos esforçamos para obter alimento e depois morremos. A diferença é que sabemos que é assim. Refletimos sobre essas etapas conscientemente. Os outros animais acredita-se que não.
Porém, ao contrário do que queremos acreditar, não temos consciência da maioria das nossas ações. Na verdade, reagimos ao que se passa à nossa volta. Tal como os animais, reagimos e nos adaptamos ao nosso entorno, aquilo que nos acontece. E, exatamente por isso, nos enganamos, cometemos erros, nos arrependemos.
Muitos enganos
Apesar de não chegarmos ao pessimismo de Schopenhauer que acreditava que tudo nessa vida é “aparência e engano”, admitimos que “às vezes” nos enganamos. Entretanto, numa reflexão mais demorada, somos obrigados a admitir que nos enganamos muito.
Primeiro, começamos por reconhecer que boa parte dos nossos últimos passos — e energia — foram em direção a castelos no ar e moinhos de vento quixotescos. Em outras palavras, edificações construídas pela nossa mente, mas que não tinham um lugar efetivo na realidade. Assim como as lutas contra obstáculos inexistentes.
E, mais do que isso: a maioria das coisas que realmente deveria nos preocupar, raramente nos passa pela cabeça.
Farsa
Quantas vezes — numa fase da nossa vida ou no desfecho de um relacionamento — nos damos conta de que tudo o que pensávamos que existia, de fato, não existiu? E eis que se materializa à nossa frente um dos clássicos combos da vida: tragédia e farsa. Uma perda, fim de um ciclo ou relacionamento, primeiro assimilamos como tragédia.
Em seguida, percebemos que tudo aquilo foi alimentado pelos seus desejos e pensamentos. Na verdade, aquilo tudo nunca existiu. Tudo aconteceu apenas dentro da sua cabeça. Foi uma farsa. Revemos toda a história e percebemos com nitidez que a farsa estava lá, mas não percebemos.
Igualmente, o mesmo acontece com aquilo que desejamos ou que julgamos ter. Depois de um longo tempo de cansaço e desgaste, finalmente compreendemos, que lutamos, nos debatemos para mantermos algo que nunca foi nosso.
Consciência da vida
E por que esses equívocos? Não estávamos conscientes? Com alguma boa vontade, podemos admitir que a nossa consciência foi ineficiente. Com alguma coragem, somos obrigados a admitir que estávamos semiconscientes. Mais coragem? Vamos admitir: não estávamos conscientes.
Entretanto, qualquer um com um pouco de lucidez é capaz de aceitar que, na maioria das vezes, a nossa vida parece-se mais com sonhos fragmentados e paisagens nebulosas do que com atos conscientes. A verdade é que sabemos pouco sobre o que nos acontece. Por isso, temos pouco controle sobre a nossa vida. E mesmo as decisões mais importantes são tomadas sem termos uma consciência nítida sobre elas.
Consciente x inconsciente
Dessa forma, quer dizer que grande parte do tempo em que estamos de olhos abertos não estamos conscientes? Sim. Platão definia que a realidade era aquilo que o ser humano apreendia nos seus momentos de maior consciência. Aqui, um indicativo de que a consciência oscila, e que nem sempre está presente. Há uma consciência básica que apreende o mundo que se apresenta. E há a consciência reflexiva, o eu que reflete sobre os seus próprios estados psíquicos. Aqui, o nível indispensável para a construção da nossa maturidade, por exemplo.
Ser e estar consciente
Em resumo, a consciência não é uma espécie de big brother permanente que tudo sabe e tudo vê. Às vezes, ela está mesmo ausente e não é apenas durante o sono. Mas, pensamos e… Antes de mais nada, os nossos pensamentos e percepções acontecem, independentemente, sem recurso à consciência. De acordo com o filósofo inglês John Gray, a percepção consciente é apenas uma fração daquilo que conhecemos por meio dos nossos sentidos. De longe, grande parte dela chega-nos por percepção subliminar. Na verdade, o que emerge à tona da consciência são sombras apagadas de coisas que já sabíamos.
E, mais do que isso, a consciência é uma variável, não é uma constante. Então somos seres conscientes e estamos muitas horas e dias “inconscientes”? Sim. Entretanto, por mais estranho que isso possa parecer — não é uma má noticia.
Consciência ausente
Afinal, as flutuações e as ausências da consciência são indispensáveis à nossa sobrevivência. Adormecemos obedecendo a um ciclo natural. Durante a noite, habitamos no mundo virtual dos sonhos. Quase todas as nossas ações cotidianas são automatizadas, sem recurso a consciência pura ou a reflexiva. As nossas motivações mais profundas estão no inconsciente, afastadas do nosso exame consciente.
Por outro lado, boa parte de nós é emocional, onde alegria e tristeza são reações. Quase toda a nossa vida mental se desenrola sem que disso tenhamos conhecimento. Os atos de criação — seja na arte ou numa tarefa doméstica — dão-se à margem da consciência. Na verdade, há poucas coisas da nossa existência que impliquem a consciência. Grande parte do que é decisivo consuma-se apenas na sua ausência.
E já agora: a consciência não é privilégio humano. Cães, gatos, e os cavalos desenvolvem uma consciência do que os rodeiam. Percepcionam a si próprios como capazes ou incapazes de agir. Possuem pensamento e sensações. A consciência desperta não é privilégio humano.
O lado menos bom
E por fim, é preciso que se diga que a consciência é, sim, um poder. Mas é também uma incapacidade. Muitas vezes, a consciência atrapalha. O violinista mais hábil não é aquele que possui uma maior consciência da sua técnica. O melhor artesão não é aquele que sabe detalhar o seu ofício. É muito frequente, a nossa performance acontecer quando estamos semi-conscientes. Na antiguidade, os arqueiros eram orientados a não pensarem nos seus movimentos. Bastava apenas sentir e soltar o arco.
De maneira idêntica, os estados meditativos cultivados por milênios pela tradição oriental, descritos como técnicas de desenvolvimento da consciência, são, de fato, formas de contornar a consciência. As drogas, os rituais, a dança, jejuns, são outros exemplos da fuga da consciência.
Da mesma forma, a arte — e muitas culturas que pregam o autodesenvolvimento — buscam e valorizam a percepção inconsciente ou subliminar.
É certo que lamentamos quando somos surpreendidos pelas farsas que cultivamos, pelos enganos que contornamos, pelos nossos deploráveis lapsos de consciência. Mas, não poderia ser de outra maneira. E não é apenas porque a consciência nos sobrecarrega. É que na maioria das vezes, ela é mesmo inútil. E para além disso, a vida seria muito mais triste se fôssemos conscientes o tempo inteiro. Ela seria árida e sem surpresas. A vida falharia completamente.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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