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Você não é todo mundo
Farakos | IStock
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Por que a gente se esconde atrás dos outros quando fala de si?

Talvez você seja jovem o suficiente para não saber que o Pelé costuma falar sobre si mesmo na terceira pessoa. Ao referir-se a si, ele diz coisas como: “o que Pelé fez…”, “o que Pelé diz…”. Já li ele explicar que tenta separar o Edson Arantes do Nascimento do personagem famoso.

Eu acho curioso que esse cacoete do Pelé chame tanto a atenção, já que a gente faz a mesma coisa o tempo inteiro, sem perceber: falar sobre si mesmo sem usar a primeira pessoa do singular. Sem usar o pronome “eu”.

Como já disse antes em outras colunas, eu gosto de prestar atenção ao jeito como falo. Para mim, as palavras são os tijolos com os quais eu construo meus pensamentos. E aprendi, pela experiência e por mestres queridos, que os materiais de construção e a forma de assentá-los faz diferença na qualidade do meu cafofo linguístico.

você não é todo mundo

Crédito: Maxim Potkin | Unsplash

Um pilar importante do meu barraco mental é a forma como me refiro a mim mesmo. Aprendi isso em um curso com o professor Arnaldo Bassoli, da Escola de Diálogo. Já na primeira aula, ele pediu para cada um prestar atenção e dizer “eu”, ao se referir a si mesmo. À turma, pediu que a gente se ajudasse a cumprir a regra. Se alguém se distraísse, a pessoa mais próxima deveria lembrar o colega de usar o pronome “eu”.

Você, não: eu

O pedido pareceu estranho e alguém levantou a mão para perguntar o que ele queria dizer com aquilo. “Porque, quando a gente fala sobre si, em geral a gente fala em primeira pessoa! É difícil você falar a respeito do que pensa e sente e não falar sobre si mesmo, professor”, disse o colega. Muita gente na sala concordou com a cabeça.

“Você, quem? Eu?”, perguntou o professor.

“Errr… Você, não: eu!”, disse o aluno, gaguejando a frase que eu viria a ouvir centenas de vezes depois, nos meus workshops, quando introduzo essa regra. A classe toda riu e entendeu.

Lá pelo meio da tarde, uma colega ao meu lado pediu a palavra e narrou um episódio sobre o tema em discussão, nem lembro qual era. No meio da fala, ela acrescentou uma generalização que seguia mais ou menos a seguinte construção (não lembro os conteúdos, mas não importa).

“Porque quando acontece ‘sei lá o que’, a gente sempre faz ‘não sei o que lá’”, disse ela. Eu, que estava adorando a regra do pronome, lembrei-a baixinho: “Eu!”. Ela percebeu a distração, me agradeceu e refraseou o comentário, usando o pronome em primeira pessoa.

“Eu quis dizer que quando acontece ‘sei lá o que’, eu às vezes faço ‘não sei o que lá’.”

Todo mundo é muita gente

Não sei se você percebeu, mas foi só trocar “a gente” para “eu” e o ato deixou de ser “sempre” e passou a ser “às vezes”. Ou seja, mudou o conteúdo da frase. Não tive chance de perguntar a ela o que a fez encurtar a frequência de ocorrência do ato. Mas tenho minhas suposições.

Falar em primeira pessoa tem vários efeitos sobre mim. O primeiro é um rigor maior em relação aos fatos. Quando eu extrapolo minhas escolhas para todos, para “a gente”, posso extrapolar também no colorido da frase, para causar mais efeito. 

Afinal, não se trata só de mim. Todo mundo faz igual. Os fatos que trago são universais. Reforço assim meu argumento, dou peso à minha opinião. Mas, quando a frase se refere só a mim, convém cuidado. Não quero que me entendam mal, que me julguem erroneamente. Melhor ser específico. “Não é sempre que faço isso diante daquilo. Acontece, mas é de vez em quando.”

O meu eu posso mudar

Além disso, ao falar sobre mim, tomo consciência sobre minhas escolhas. Todos temos padrões inconscientes. Diante de certas situações, temos respostas automáticas, forjadas ao longo da nossa vida. Diante de uma ofensa, por exemplo, há quem ofenda de volta, para dissuadir a ameaça. Outros partem para o confronto. Alguns ficam paralisados. Muitos fogem.

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Crédito: Lazy Bear | IStock

Seja qual for o padrão inconsciente disparado, não há espaço para reflexão sobre o que é mais adequado. Quando meus gatilhos são apertados, não enxergo caminho alternativo. Estou condenado a agir daquela maneira.

Entretanto, se alguém me questionar a respeito de uma resposta automática desse tipo, possivelmente vou botar a culpa na situação. “Você não viu o que ele falou a respeito da minha mãe? Você queria o que?” Não há opção. “Quando alguém ofende a mãe da gente, a gente reage assim.”

Por fim, quando passei a usar a primeira pessoa, foi como se caísse um dos véus que turva minha visão sobre minhas escolhas. Quando digo “eu”, percebo que é minha escolha. E que talvez os outros ajam diferente. Então há outras maneiras de agir? Posso fazer diferente também?

O guru do gibi

“Com grande poder, vem grande responsabilidade.” A frase é do Tio Ben ao sobrinho Peter Parker, o alter-ego do Homem Aranha. Gosto de saber que uma das frases mais influentes da minha vida veio de um gibi. Ajuda-me a lembrar que posso aprender com tudo e com todos.

Quando começo minhas frases dizendo “eu”, chamo a responsabilidade sobre o que faço. Junto, vem a autonomia para fazer diferente. Mas, se prefiro não assumir a responsabilidade, culpando o contexto pela minha opção, jogo fora a chance de mudar minha conduta. Estou condenado a repetir minha história tantas vezes encenada.

Por fim, agora que já expliquei o conceito, posso confessar um pecadilho e pedir desculpas. Lá no começo do texto, usei a expressão “a gente” em desacordo com o que defendi aqui. É que, naquele momento, se eu construísse a frase de outra forma, talvez o texto perdesse um pouco do impacto. Você vai saber me perdoar.


RODRIGO VERGARA é jornalista, ator improvisador, facilitador de processos de confiança em equipe e fundador do PlayGrounded – a Ginástica do Humor. É gente como a gente.

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