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Julgar o outro é não enxergar a verdade de cada um
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Vivemos relações nas quais julgamos e somos muito julgados. Penso que são ações pouco inteligentes, e isso por vários motivos.

Não é admissível julgar alguém, isso é uma abstração. Cada pessoa vê o mundo a partir de seu ângulo. É como se cada um de nós tivesse uns óculos que impusessem essas lentes para toda relação existente (e até quando olhamos para dentro de nós mesmos).

Do meu ângulo, cada percepção é sempre interpretação: e mesmo que eu me esforce muito para compartilhá-la, sempre será a partir da minha narrativa; o outro nunca terá acesso às minhas próprias lentes. Na melhor das intenções, ele pode se esforçar para imaginar como seria… Mas aí essa imaginação só será possibilitada pelo repertório das lentes dele.

Nesse mundo complexo das lentes próprias, nada é óbvio, e não existe senso comum. Na nossa tentativa de apaziguar a ansiedade que isso dispara, recorremos ao julgamento como se ele fosse um corrimão, como se emprestasse segurança e conforto num mundo onde isso não é dado.

É como se julgar o outro garantisse um conforto de que estou no caminho certo. Por isso, vivemos sempre buscando tantas verdades, tantas receitas. No fundo, todos nós sabemos que nenhum barco é suficiente para atravessar o rio da vida.

Eu tenho a minha verdade e você tem a sua. Respeito é eu validar sua verdade, ainda que eu não a compreenda ou discorde de você (o contrário disso é o discurso de ódio).

Às vezes ficamos entre nos colocar a partir da nossa verdade ou nos calar, sentindo que esse retraimento evitaria um julgamento de outrem. Mas ter uma verdade não significa exportá-la para o outro como se servisse para ele. E muito menos tem sentido o calar-se, porque existimos a partir das nossas verdades, que não são imutáveis.

Mas daí a pensar que a pessoa está fazendo algo errado, quando é diferente do que eu penso ser o “certo para mim”, implica desconsiderar que as pessoas estão fazendo sempre o melhor dentro do “lugar” de verdade em que elas estão.

Nesse lugar não existe julgamento, existe aceitação. Isso tem limite, e o limite é justamente a falta de respeito.

Mas só dá pra ter esse espaço nas relações de troca, não nas relações de poder. É aí que diferencio o que é meu do que o mundo tem me imposto e eu tenho comprado sem perceber. E isso é um aspecto importante do patriarcado que temos de desconstruir. Essa lógica que nos impede de acessarmos e discutirmos mais livremente nossos afetos e verdades.

Dar lugar para a dúvida, acolher o princípio da verdade da intuição de cada um é o contrário desse lugar da “receita”, que só gera culpa e sofrimento, além de uma fantasia de previsibilidade e controle.

A lógica do patriarcado impõe que a gente nunca deve ser “metamorfose ambulante”, que a fala vale mais se vier do trono da razão.

Assumir um ponto de vista como “exportável” segrega, não compartilha, encerra ao invés de abrir. É reducionista e simplista, e facilmente vira fascista. Uma verdade prevalecer sobre outra implica presumir que uns são mais humanos que outros (e sabemos aonde isso vai dar).

Mas piora porque, para além disso, aprendemos que para sermos pessoas melhores, altruístas, generosas, evoluídas, devemos nos julgar. Levantamos um sem número de regras e leis que justificam nossas escolhas, e que normalmente nos afastam de nosso coração. Aprendemos que a conexão com nosso coração é perigosa e deve ser evitada a todo custo.

No fim, “cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é” e é só desse lugar que cada um pode produzir os próprios cuidados.

A vida nos coloca sempre diante de decisões próprias, que só quem está atrás do nosso próprio nariz pode tomar. E isso significa que a gente não é, a gente está. E esse estado de “estar” implica abertura, constante experimentação e liberdade pra se repensar.

E a gente se abre e se repensa no mundo, nas relações. Por isso é tão importante a gente cuidar de nossa rede de troca.

Isso conversa com sua pergunta? Isso te desperta novas perguntas? Mande sua questão para debatermos por aqui.

*Myrna Coelho é psicóloga clínica, professora e doutora pela USP. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão online. 

*Texto originalmente publicado em 2019

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