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Após quase três décadas, ela está de volta?
Nick Night | Unsplash
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A campainha toca, justo na hora que ela liga sua série preferida. Achou estranho pelo horário, estava tarde para algum pedido da igreja. As entregas costumam chegar antes das 17h. Mesmo ali, no interior, ninguém mais tem o hábito de bater à porta sem avisar.

Por um minuto, a preguiça de levantar do sofá mandou ela se fingir de morta e não atender. Mas, no minuto seguinte, a curiosidade não deixou. Gabriela abriu a porta e viu uma mulher alta, de olhar penetrante parada ali. Gabriela, então, dá boa noite e pergunta a quem deve a visita.

A mulher responde, com uma voz macia, e diz que ela provavelmente não deveria se lembrar, mas que se chamava “Inflação”.

Gabriela responde que realmente não se lembra e insiste em saber o que aquela mulher queria com ela.

A mulher responde imediatamente que essa não era uma visita exclusiva. Contou que há alguns meses tem visitado o lar de cada família de brasileiros. Que estava batendo na porta de todo mundo “tipo o Censo do IBGE”. E que antes de qualquer coisa, precisaria se apresentar devidamente, pois não haveria como Gabriela entender a sua importância se não tiver mais contexto.

As devidas apresentações

A curiosidade de Gabriela chega em um nível altíssimo e ela, mais do que interessada, diz que gostaria de ouvir o que a mulher tem a dizer.

A Inflação entra na casa de Gabriela e – antes mesmo de se sentar no sofá – já diz que não esperava ser recebida com o devido espanto, afinal de contas seria impossível que Gabriela a conhecesse. Ela diz então que todo mundo que nasceu depois de meados dos anos 1980 não conhecia a famosa Inflação.

Então, a Inflação começa a se gabar dizendo que já foi muito importante nesse país, que era quase que onipresente. Que desde os anos 60 fazia e acontecia e que nos anos 80 fez a festa.

“Seus pais certamente se lembram muito bem de mim, eu causava geral. No mercado eu tocava o terror, mudava o preço dos itens umas duas vezes por dia!”

Gabriela faz uma cara de que não entendeu e a visitante emendou dizendo que “na época que você nasceu, fim dos anos 80 e início dos 90, um produto amanhecia com um preço e à tarde estava outro. Surreal isso, não é?”. Ela diz que os telejornais a chamavam de “Hiperinflação”, que se sentia importante. Que era uma “Inflação Galopante” e chegava a superar os 80% ao mês!

Gabriela, já indignada, busca entender o que tinha sido feito para tentar conter essa fera.

Planos para evitá-la

“Olha Gabriela, tentaram de tudo! Começou em 1979 com o Plano do Delfim. O Presidente Figueiredo começou com essa ideia, foi pioneiro e colocou em prática. Mas não fez nem cócegas. Tanto é que ele repetiu em 1981, com o Plano Delfim II, e, não satisfeito, tentou de novo em 1983 com o Plano, adivinha? Plano Delfim III. Que piada de mau gosto.”

No final, foi isso? – pergunta Gabriela, com a euforia de quem está assistindo a um filme campeão do Oscar.

Inflação responde que para o Figueiredo e Delfim, sim, foi game over! Mas que depois veio o Dornelles, em 1985, chamado pelo Sarney, em um tal de “Plano Dornelles”. E que esse também não deu em nada. “A Dor, foi Nelles. Haha, piada fraca né? Mas eu não podia perder essa.”

A Inflação disse, em seguida, que o Sarney era insistente e mais agressivo. Que já foi logo trocando o responsável. Tirou o Dornelles e colocou o Funaro e fez o Plano Cruzado. Trocou moeda, congelou preços. “Essa época a coisa estava esquentando muito, eu brilhava nas paradas de sucesso. O cara tinha que vir com tudo ou então era mais caos!”

Funcionou? Pergunta uma Gabriela já roendo as unhas.

“Funcionou pra mim.” Ela diz que, no começo Sarney ficou animado, pois a reduziu pra 12%, e até contou vitória. “O Sarney ficou popular, todo mundo achava que ele ia me domar, que ele era o cara”. “Sabe quanto o time faz dois gols e chega nos 30 minutos do segundo tempo? Não dá pra achar que venceu o jogo né?”

Gabriela mal se aguenta e perguntou logo o que aconteceu depois.

Novas estratégias

Já com um ar bem acadêmico, a Inflação contou que aquela estratégia era insustentável. “Pensa comigo: eles congelaram os preços…  E essa era a maior estratégia! Mas aí as mercadorias começaram a faltar, e sumiram. Depois, surgiram mercados paralelos e as pessoas só conseguiam comprar coisas pagando um “ágio”. As exportações caíram, as importações aumentaram e as reservas cambiais foram esgotadas. Então, eu voltei linda, leve e solta. Fui para o alto e avante! Os preços de alimentos, combustíveis, bebidas e automóveis aumentaram a um nível insuportável. A economia entrou em colapso.”

Em um tom ainda mais sério, revelou que o Plano Cruzado foi mais do que um fracasso. Que foi desse plano que vieram incontáveis ações judiciais de cidadãos comuns que exigiram de bancos e governos a reparação das perdas monetárias sofridas. Que o Plano Cruzado deteriorou a balança de pagamentos do país com a consequente queda nas reservas internacionais. E que o Brasil teve que decretar moratória da dívida externa em 1987, pois não tinha condições para honrar os compromissos externos. “Até eu fiquei assustada”, disse a Inflação.

“Mas então como acabaram com você?”

Desventuras sem fim

Em tom assertivo, a Inflação respondeu: “Você deveria saber de uma coisa: eu nunca acabei, tanto é que estou aqui, na sua casa, deixando até o seu cafezinho mais caro.” E disse que sempre esteve por aí, só que uma pessoa da geração “millennial” como Gabriela não percebia, pois estava uma Inflação mais leve.

“Sabe quando você ganha 3 kilos em 1 ano, depois mais 3 no outro, e no outro… Passam-se 10 anos e você se assusta? Eu sou assim. De 1994 até aqui, fui “comendo pelas beiradas”, aí é bem mais difícil de me perceber. Você sabia que no ano 2000 um carro popular custava uns R$13 mil? Claro que o salário médio também era bem mais baixo, mas pensa bem!”

Estou curiosa para saber como te enfraqueceram! – exclama uma Gabriela em chamas.

A Inflação se recompõe e retoma a história. Diz que o Sarney ficou extremamente indignado com o fracasso épico e foi lá e fez o Plano Cruzado II. De novo com o Funaro, meio que no desespero – “tem horas que o ego é nosso maior inimigo né?”

Contou que foi, de novo, uma tragédia, mas que ele não desistiu – trouxe o Bresser para fazer o Plano Feijão com Arroz. “Mas nem o Feijão com Arroz ele fez bem feito.” E que depois voltou com o Plano Verão, em 1989, mas também não deu. “Esse ano foi o auge. Ninguém me aguentava mais. Acho que nem eu me aguentava mais. Não sei quem fazia mais sucesso nessa época, se era eu ou a Xuxa.”

Eu me lembro da Xuxa! – grita Gabriela.

“Depois veio o Collor, o “caçador de marajás”. Esse foi piada pronta. E piada de muito mau gosto.” Resumindo: a Inflação conta que o Collor mal entrou no Governo e já bloqueou o dinheiro depositado nos bancos, tanto de cadernetas de poupança quanto contas correntes de pessoas físicas e jurídicas. “Ele confiscou mesmo!”

Diz que deu tão errado que, em maio de 1990, dois meses depois, ele fez o Plano Eris também com a Zélia Cardoso de Mello como Ministra da Fazenda. Deu ruim de novo. No ano seguinte, em janeiro de 1991, manteve a Zélia e criou o Plano Collor II. “E aí? Deu ruim e foi rápido de novo. Em maio do mesmo ano ele chamou o Marcílio Marques e fez o Plano Marcílio. Mas aí o caldo desandou de tudo quanto é jeito.”

Nesse momento fez uma pausa e comentou que essa história é para outra conversa, mas que muita coisa pesada veio à tona em 1992 e o Collor sofreu impeachment.

Uma doce ilusão de calmaria

“Bom, depois de 13 planos de estabilização econômica fracassados, em 1994 o então Presidente Itamar Franco, junto ao na época Ministro da Fazenda e hoje ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, implementaram o Plano Real.”

Você deu trabalho mesmo hein? E esse então, deu certo? O que aconteceu de diferente? – questionou a dona da casa.

“Sim, deu tão certo que eu fiquei bem quieta no meu canto. O Plano Real teve como principais medidas o corte de despesas e aumento de 5.5 pontos percentuais em todos os impostos federais, a desindexação da economia, ajustes de preços anualizados, sem congelamento; a redução de impostos de importação e abertura da economia, entre outras medidas. Alguns anos depois, em 1999, foi criada uma boa forma de me controlar, o regime de metas de inflação. Então esse regime me coloca no eixo, ele tem por objetivo fazer com que a inflação oscile dentro de uma faixa estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional”.

“Eu estive por aí, mas bem tranquila, algo em torno de 5% ao ano, mais ou menos. Eu continuo sendo chamada como sempre fui, como ‘responsável pelo aumento generalizado de preços de uma determinada cesta de bens e serviços, em um determinado período’. Eu continuo fazendo com que a moeda perca valor ao longo do tempo. Quanto maior eu for, menor é o poder de compra. Lembra de quanto custava o carro no ano 2000?”, completou a Inflação.

A Inflação, próxima de finalizar sua história, contou: “No Brasil o principal índice que me mede é o IPCA, que é usado pelo Banco Central para me controlar, um sistema de metas de inflação que te falei. E, claro, eu faço parte do seu dia. Eu impacto seus investimentos e tudo o que você compra. E eu estou voltando um pouco mais forte esse ano.”

“Agora eu entendi mesmo quem é você” – exclamou Gabriela. “E estou até com medo! Como que eu faço?”

A Inflação diz que não é para tanto. Que há muitas maneiras se proteger dela.

“Mas esse é assunto para uma próxima conversa. A nossa conversa foi ótima mas tenho várias outras portas para bater e me apresentar.”, despediu-se a Inflação, com um até logo.

Leia todos os textos da coluna de Thiago Godoy em Vida Simples.

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