COMPARTILHE
A saga de uma viajante pelo leste africano
Arquivo pessoal / Jéssica Paula
Siga-nos no Seguir no Google News

Sair pelo mundo trabalhando pelas pessoas que vivem em áreas de risco ou conflito foi uma vontade que eu tive quando era criança. Pequena, eu admirava o trabalho de heróis com distintivos da Cruz Vermelha ou dos Médicos Sem Fronteiras — e sabia que jamais faria parte dessa “liga”. Minhas habilidades passavam longe das ciências que concedem a alguns os superpoderes de cura e reconstrução. Eu estava mais para a Mafalda, de Quino — a garotinha sonhadora que vive questionando a ordem mundial e não aceita o mundo como ele é —, do que para uma útil médica ou engenheira.

Mesmo assim, constantemente eu me pegava pensando que emprestar meu tempo a pessoas em países distantes — quem sabe só para conversar e rir um pouco —  talvez pudesse lhes trazer conforto, caso estivessem precisando de algum.

Enquanto a gente cresce, nossas fantasias costumam se dissipar, mas a minha só aumentava. Será que as organizações humanitárias não teriam um lugar guardado no avião para levar junto mundo afora heróis proseadores, do tipo contadores de histórias, com poderes para tirar da invisibilidade os nomes, as caras e as trajetórias de quem vive nos lugares mais perigosos e sofridos do planeta? Sei lá, heróis com a missão de contar para o mundo que tem gente lá?

De Mafalda para viajante independente

Anos mais tarde, consegui transformar um pouco de sonho em realidade. Como viajante independente, tive a oportunidade de sair do meu pequeno mundo e conviver com muitas pessoas que deram de cara com a guerra na porta de casa. Ouvi suas histórias e aprendi com elas o máximo que pude.

No entanto, não cheguei a todos os lugares onde gostaria de ir, nem conheci todas as histórias que eu tinha vontade de ouvir e, principalmente, não ajudei tantas pessoas como sonhava ajudar.

É que um viajante na missão de escutador e contador de histórias precisa levar consigo um tipo raro de coragem e uma força interior que não brota fácil em todos. Sem esses superpoderes, o coração não aguenta e a gente recua.

Fui até onde dei conta. E voltei.

LEIA TAMBÉM: As histórias das lágrimas que unem mulheres viajantes

Histórias morrem se não forem contadas

Em seu livro A Grande Magia, a escritora norte-americana Elizabeth Gilbert (também autora de Comer, Rezar, Amar) sugere que ideias são como entidades vivas. E quem é vivo não gosta de esperar tanto. Ou, pelo menos, não tolera ficar ali no canto abandonado. No mundo da contação existe um entendimento de que histórias também são assim, vivas! Como tal, querem ser contadas, senão morrem!  Assim, quando chega a hora, elas encontram seu canal por meio de colaboradores humanos preparados.

Acredito ter sido bem desse jeito mesmo que histórias de pessoas que vivem no temido leste africano (região há anos assolada por sangrentos conflitos políticos) encontraram a viajante Jéssica Paula. Ela escreveu o livro Estamos Aqui, obra que relata sua trama pessoal —  ora cômica, ora eletrizante —  para chegar de forma independente a um dos lugares considerados como um dos mais conflituosos do mundo. Jéssica foi até lá para vasculhar passado e presente de gente invisível e, então, contar ao mundo algumas verdades que precisam ser contadas.

Jéssica é da turma dos preparados.

Como se desperta um superpoder

Jéssica nasceu no interior de Goiás. Aos seis anos perdeu o movimento das pernas e a força do tronco por causa de uma infecção na garganta que migrou para a medula. Já adulta, passou a ser vista por aí viajando com um par de muletas e um mochilão de 80 litros nas costas, derrubando preconceitos a respeito de sua realidade física.

Só que ela queria contar histórias de outras pessoas também. De preferência, daquelas que tivessem problemas, como disse uma vez, “maiores que os dela”. Então, achou que seria uma boa ideia ir atrás de assunto na Etiópia, no Sudão, no Sudão do Sul e em Uganda. Queria conhecer os problemas, conquistas e desejos da gente de lá.

Ela tinha vontade de desvendar a humanidade por trás dos frios números oficiais dos relatórios internacionais e das narrativas engessadas da imprensa. Jéssica tinha aquela pitada a mais de coragem que me faltou quando recuei. Quem lê Estamos Aqui, percebe que ela tem também um forte domínio de si mesma e o superpoder de transformar medo, melancolia, decepção e imprevistos em energia.

De onde é que vinha tamanha força?

Aos 12 anos, quando ainda não andava de pé, foi convidada pela mãe a dar seus primeiros passos apoiada em muletas.  Uma volta ao redor da casa para começar. A força precisaria brotar dos braços e do tronco. Desafio aceito, rosto e cabelos brilhavam de suor e os olhos, de lágrimas de esforço. A cada passo vencido, ganhava um pedacinho de mamão como energético  — sabe como é artimanha de mãe, né?

Jéssica deu a volta na casa. E da casa, foi para o mundo. Até que um dia, chegou à África.

Deixe Deus estar com você

O congolês Pascal Bruno, é o primeiro amigo que Jéssica nos apresenta. Ela nos coloca junto com ele lá no dia em que ele jogava bola num campinho e ouviu os tiros que entregavam a chegada do inimigo ao vilarejo. É então que corremos com Pascal, entramos em sua casa, olhamos em volta e não encontramos sua família. Sabemos que não há tempo para procurar ninguém e seguimos com ele em disparada pela mata para não morrer… Percebemos os tiros se dissipando e a multidão tropeçando, caindo, esbarrando nas árvores e ficando pelo caminho. Sentimos o escuro descer e o silêncio chegar. Nunca encontraremos a família de Pascal no livro de Jéssica. Ele ficou sozinho.

O rosto de Pascal aparece na página seguinte. Ele é simpático. Está sorrindo, tem o olhar cansado. Então a gente se apaixona por ele e quer continuar a ler. Pronto, a autora-viajante já nos atraiu para a armadilha.

A partir daqui não dá mais para largar o livro. Jéssica vem com a história de todos os outros amigos que fez, um a um, sempre do mesmo jeitinho, nos colocando lá,  no centro do dia que marcou a vida de cada um. E a gente vai se apaixonando por eles também.

Mitiku, um homem que dedica a vida a  ajudar as pessoas nessa África distante e conflituosa, aparece no início da jornada com um conselho providencial. “Deixe Deus estar com você” vira o mantra que Jéssica adota nessa aventura. É que às vezes, o único meio de continuar fazendo o que foi fazer será soltar o controle e deixar que o destino encaixe as peças necessárias.

Foto mostra Jéssica e seu amigo Mitiku sentados à mesa.

Jéssica e o amigo Mitiku: Deixe Deus estar com você. (Foto: arquivo pessoal/Jéssica Paula)

Tirando o véu que faz gente invisível

Jessica não fala só de tristeza. Ela entrelaça alegria, aventura e alguma graça entre cada história que conta.  E isso é bom porque se eu choro com Pascal, sorrio na página com a foto de uma linda mulher coberta por vestes coloridas, sorridente e forte, apesar da pobreza que a cerca e das tragédias que viveu.

Quando eu choro pelo menino separado da família e feito soldado à força aos 8 anos, vibro de alegria ao descobrir que um dia ele consegue achar o caminho de volta para casa.

Jéssica sentada em um sofá ao lado de outras mulheres moradoras locais.

Children’s Village: Numa periferia no Sudão, Jéssica descobre mulheres que fazem o trabalho de mães voluntárias. (Foto: arquivo pessoal/Jéssica Paula).

A cada história contada, Jéssica tira uma vida da invisibilidade. E como jornalista que é, nos alimenta com dados e informações verificadas e nos ensina sobre onde estamos e o porquê daquelas coisas todas acontecendo.

Ela nos conta sobre senhores da guerra, encontra-se com a doce mulher que foi a enfermeira pessoal de um deles, e nos revela segredos.

Numa feira (!?) conhece um famoso e temível guerrilheiro feito soldado quando criança, e nos exibe seu lado cortês e humano, e as possíveis razões de ser quem é. E não é que a gente quase se apaixona por ele também?

A leitura de Estamos Aqui provoca centelhas de empatia, compaixão e desconforto. É o que acontece quando alguém conta uma história que precisa ser contada.

Como se faz o impossível

Envolvido no delicioso e fluido texto, o leitor vai se perguntar como Jéssica segura muleta, câmera, mochila e estado emocional tudo ao mesmo tempo sem desmoronar. Também não sei.

Ela emana uma energia vital que não se vê, mas é sentida. Acredito que isso começou a acontecer no dia da volta inaugural com muletas. Quando colocou firmeza nas manoplas e saiu andando ao redor da casa sobre os bastões, ela venceu o impossível. Talvez estivesse sendo preparada para fazer coisas impossíveis como entrar em Nilo Azul, um estado do Sudão do Sul onde estrangeiros, jornalistas e até a Cruz Vermelha estão proibidos de colocar os pés.

Jéssica foi preparada para buscar histórias onde impera o terror.

No fim das contas, a condição física dessa viajante proseadora vira um mero detalhe. Aliás, a gente só se lembra mesmo das pernas dela quando suas muletas derretem no chão quente num dia em que o termômetro anuncia o fim dos tempos batendo os 52 C°.

Os bastões de andar são meros coadjuvantes enquanto Jéssica se vira fazendo mímica onde não conhece a língua, se desviando de buracos e contornando o caos constante só na força do braço e na presença de espírito.

Mais de uma vez ela acaba comendo poeira no meio do caminho enquanto a condução vai embora (e de vez em quando a cena é engraçada — desculpa aí, Jéssica) para que explique às autoridades por que ela está lá, desacompanhada, num lugar tão distante do próprio mundo. Bom, no começo da jornada, assim que ela chega no campo de refugiados de Bambasi, na Etiópia, um rapaz chamado Al-Bash logo vem em sua direção e diz:

— Eu sei por que você está aqui. Você está aqui por causa da gente. Quando voltar pro seu mundo, por favor, conte que estamos aqui.

Então, esse livro é para todos eles, conta Jéssica.

Para todos eles que estão lá.

Leia todos os textos da coluna de Juliana Reis em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

0 comentários
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

Deixe seu comentário