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Você vive um relacionamento abusivo consigo mesmo?
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 Aprenda a trocar o autoataque pela correção compassiva.

Imagine conviver com alguém que te diga, em alto e bom som, tudo aquilo que você diz para si mesmo. Para muitos de nós, é inconcebível viver com alguém que personifique nosso diálogo interno, simplesmente porque ele é abusivo demais. Achamos inadmissível que alguém nos chame de incompetentes, desinteressantes, chatos, sem graça e pouco atraentes. No entanto, nos autorizamos a usar estes adjetivos para qualificar a nós mesmos como se o autoataque fosse menos danoso. Mas não é. Nosso cérebro processa de forma similar o mundo externo, que percebemos, e o mundo interno, que imaginamos. Quer fazer um teste? Feche os olhos e imagine seu prato favorito. Imagine o cheiro, as cores, a textura da comida. Salivamos ao entreter a imagem sobre o prato predileto, da mesma forma que salivaríamos ao ver a comida sobre a mesa. As consequências de viver um relacionamento abusivo, seja consigo mesmo ou com o outro, são parecidas. Entre elas estão a baixa autoestima, considerar-se culpado e merecedor dos adjetivos maldosos. Quando o abusador é interno, existe ainda um problema a mais: ele está presente 24 horas, todos os dias. 

O autoataque pode carregar um sentimento de desprezo, raiva ou impaciência em relação a si mesmo. Antes de uma apresentação, por exemplo, é comum sofrer por antecipação com pensamentos do tipo “espero que eu não estrague tudo”. Diante de um elogio, brotam os julgamentos “não foi tão bom assim”, “qualquer um poderia ter feito a mesma coisa”. Diante do erro, vem a constatação “eu sabia que iria vacilar”, “não sei porque ainda insisto”.  Também é comum sofrer com a repetição dos pensamentos, “eu deveria ter”, “se eu tivesse”. E a conclusão é que você errou porque você é o problema. Quando o autocrítico é severo demais ele inflaciona a sua culpa. Ele desconsidera todos os fatores externos que contribuíram para que você agisse de tal forma. Ele te comunica que é necessário fazer mais ou mudar para ser bom o suficiente. 

Pesquisas demonstram que o autoataque é ainda mais normal em sociedades em que a perfeição é tida como natural e esperada. Não é coincidência que as estatísticas de depressão e ansiedade estejam crescendo em ritmos assustadores à medida que ideais de perfeição se tornam comuns nas redes sociais. O autocriticismo excessivo está por trás da recusa em arriscar novos sonhos, do medo de se colocar em público, de progredir profissionalmente ou nos relacionamentos. Quando o erro é aversivo demais, preferimos não tentar.

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Crédito: Nito100 | IStock

Mas de onde vem?

Paul Gilbert, pesquisador e criador da Terapia Focada em Compaixão, explica que temos a necessidade inata de nos sentirmos valorosos. Algumas pessoas sentem que tem valor social. Outras, acreditam que o valor próprio é algo a ser conquistado. Ou seja, o apreço, apoio e pertencimento não acontecem a priori, mas são resultado daquilo que fazem. Cada atitude é uma oportunidade de reavaliação. E se precisamos nos avaliar o tempo inteiro para sabermos se temos valor, está subentendido que não temos valor intrínseco. 

Por trás do autoataque está a decepção por não atingir o resultado, ou por não ter as características, que levariam ao sentimento de valor próprio. Interpretamos o erro como confirmação de que não somos bons o suficiente. O acerto passa a ser mais um alívio do que motivo de comemoração.

Começa cedo

Pesquisas demonstram que as nossas experiências de vida influenciam nosso senso de valor próprio. Pais negligentes ou muito críticos, severos e punitivos, tendem a criar filhos mais inseguros. É claro, quando a pessoa cresce precisando provar que tem valor a todo momento, a tendência é que ela continue sentindo esta necessidade ao longo da vida. Quanto mais o sentimento de inferioridade nos assombra, maior a propensão ao autoataque. Mentores ou professores muito rígidos e experiências de bullying, também podem contribuir neste sentido.

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Crédito: Kelly Sikkema | Unsplash

De fato, muitas vezes internalizamos as palavras e julgamentos que ouvimos ao longo da vida, e a voz do outro passa a ser a nossa própria. Percebemos que estamos falando conosco da mesma forma como nossos pais, irmãos, tios, colegas ou professores. É importante estar atento a este diálogo interno e reconhecê-lo. Entendendo que você pode ouvi-lo, mas não precisa acreditar em tudo o que ele diz. De fato, muitas vezes a mensagem é dura, preconceituosa e até absurda. Dar um passo atrás e questionar estes pensamentos ajuda a vê-los pelo que são em vez de acreditar e reforçar este diálogo interno. 

O segredo está na intenção

Para Paul Gilbert, o que diferencia o autocriticismo destrutivo daquele que contribui para a nossa evolução é a motivação por trás da crítica. Quanto maior o medo da inferioridade, mais precisamos provar que temos valor. E, normalmente, fazemos isso a partir da competição com o outro. Se você se compara e se sente melhor do que o referencial, você conclui que é valoroso. A autocrítica destrutiva é normalmente motivada pelo desejo de sentir-se melhor do que o outro. E pelo sentimento de insegurança quando não conseguimos.

Quando falhamos em manter ou atingir determinada posição social, a mensagem é que não somos bons o suficiente. Ou que precisamos fazer mais para sermos importantes. O nosso valor social é ameaçado. Portanto, passamos a nos esforçar para ter destaque e para esconder aquilo que não gostamos em nós. Este autocriticismo te aprisiona em um diálogo punitivo e destrutivo, mina a sua autoconfiança e te deixa paralisado diante de desafios. 

Crítica interna

Uma das ironias a respeito do autocriticismo é que as pessoas sofrem nas mãos do crítico interno, mas, mesmo assim, temem abandoná-lo. Achamos que nossa evolução pessoal depende da autocrítica. De certa forma, isso não deixa de ser verdade. É a crítica construtiva que nos deixa entender onde podemos melhorar. A capacidade de avaliar os nossos comportamentos e performance, Assumir a responsabilidade por nossos erros, nos torna melhores como indivíduos e como parceiros. Não tem nada de errado em ter boas expectativas a respeito de si mesmo e frustrar-se com a falha.

O sentimento de culpa, por exemplo, nos leva a escolher melhores comportamentos da próxima vez e nos motiva reparar aquilo ou aqueles que prejudicamos. A boa autocrítica é aquela motivada pelo nosso sistema afiliativo. Temos o desejo inato de cuidar de  nós mesmos e do outro. Quando a motivação é compassiva, olhamos para nossos erros não porque somos inferiores, mas porque queremos o que é melhor para nós e para os demais. Ser bom e valoroso não implica ser livre de erros e defeitos. Podemos melhorar sempre porque somos humanos e, portanto, naturalmente imperfeitos. Não é nosso senso de valor que está em jogo, mas o nosso bem-estar.

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Crédito: Noah Silliman | Unsplash

Quatro passos para corrigir-se compassivamente

Primeiramente, para corrigir-se compassivamente é importante partir do sentimento de valor intrínseco. Você pode até criticar a sua conduta ou o valor do seu comportamento, mas não duvidar sobre o seu valor. Para que a decepção em relação à conduta não atinja seu autoconceito, lembre-se que defeitos e erros são os que nos fazem humanos, iguais aos demais, e não diferentes ou inferiores. Nossos erros são parte de quem somos, mas eles não nos definem.

Segundo, lembre-se sobre a natureza multideterminada dos eventos. Raramente somos os únicos responsáveis. Até nossas características pessoais se desenvolveram a partir de um ambiente que nos moldou assim. Se você fosse adotado por uma família neozelandesa — ou por uma tribo indígena — certamente seria muito diferente do que você é hoje. Existem milhares de versões possíveis para cada um de nós. Tornamo-nos quem somos a partir do ambiente que estamos inseridos. Nossos erros fazem sentido. Certamente outras pessoas seriam como você, ou agiriam como você, em situação similar. Erros não são frutos de má vontade ou incompetência.

Terceiro, mesmo que seus erros e defeitos tenham inúmeras razões para existir, é sua responsabilidade assumi-los e consertá-los. Porém é mais fácil e produtivo pensar em soluções a partir daquilo que você já faz bem ou dos recursos que já tem. Se você está decepcionado porque costuma perder a paciência com alguém, pense como você pode usar as suas habilidades e recursos para agir diferente da próxima vez. Faça um plano.  

E, por último, é importante usar um tom de apoio e compreensão. Uma dica que costuma funcionar é pensar sobre como você falaria com um grande amigo que passasse por uma situação similar. Ou então, refletir sobre como alguém que te ama e te admira, falaria com você diante desta situação. Conectar-se com o seu amor por você mesmo, antes de corrigir-se é essencial. Lembre-se que a correção compassiva surge do desejo de cuidar, e não do desejo de competir.


Adriana Drulla é Mestre em Psicologia Positiva pela Universidade da Pennsylvania (EUA) e pós graduada em Terapia Focada em Compaixão pela Universidade de Derby (Inglaterra), onde teve como mentores Martin Seligman, psicólogo fundador da psicologia positiva, e Paul Gilbert, psicólogo criador da Terapia Focada em Compaixão. Semanalmente fala sobre psicologia e mente compassiva no podcast Crescer Humano.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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