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Uma vida sem pausa adoece
Hannah Busing | Unsplash Hannah Busing \ Unsplash
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A vida não é feita de fases pré-definidas no berço da maternidade. Ela conversa com a gente o tempo todo. Parar pode mudar nossa relação com o tempo.

“O tempo perguntou pro tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo respondeu pro tempo que não tem tempo pra dizer pro tempo que o tempo do tempo é o tempo que o tempo tem”. Sempre gostei desse trava-língua que aprendi com a minha avó, dona Filomena, quando eu era criança. No final, ela concluía: “Aproveita, meu filho, que o tempo não volta”.

Precisei chegar aos 45 anos para entender que esse “aproveita”, que ela dizia de forma tão genuína, vinha de um campo sutil que percebemos somente quando mudamos o compasso do nosso relógio, deixando mais harmônico o bailar dos ponteiros da vida. Acontece que, na sinfonia do tempo, só encontramos o nosso maestro na pausa, aquele instante de plenitude. Até nos darmos conta disso, normalmente aceleramos o calendário e confundimos o “aproveita” com fazer um monte de coisas. E todo mundo vai pelo mesmo caminho.

Vivendo na matrix 

Durante muito tempo, vivi no único modelo que me venderam como sucesso: nasça, cresça, estude, entre para a faculdade e arranje o melhor emprego. Bata suas metas. Mantenha-se sempre em forma, você pode tudo. Só não pode uma coisa: parar.

Acontece que a vida não é uma sucessão de fases pré-definidas com roteiro traçado no berço da maternidade. Existe uma outra realidade que vai se impondo com o tempo, uma espécie de “chamado interno”, cuja bússola é o coração.

O problema é que normalmente costumamos ignorá-lo, até que chega um dia em que ele se apresenta, ou pelo amor ou pela dor, e geralmente pela dor. Aliás, nesses tempos pandêmicos, muita gente vem sentindo esse chamado. O meu, veio um pouco antes. E pela dor.

O corpo fala 

Em 2018, meu semblante não escondia a carga de estresse que meu corpo carregava. Meu estômago não estava dando conta de digerir uma rotina extenuante e vazia de significados naquele momento. Com mais de 20 anos de empresa, a vida me chamava para uma mudança: e quem disse que mudar é fácil? 

Primeiro tentei me convencer de que os finais de semana e feriados prolongados bastariam para recarregar minhas energias. No entanto, os finais de semana, e principalmente as férias, demoravam muito a chegar.

Dentro de mim ecoavam duas vozes antagônicas, uma que tentava me dizer que aquele meu trabalho era a construção de toda uma vida e que, por isso, deveria insistir: outra que me mostrava que havia um universo de possibilidades. Por que não abrir espaço para algo novo, ainda que nem soubesse ao certo o que seria?

É interessante observar que, nos duelos internos, quem acaba levando a melhor é sempre a culpa. Foi ela quem me convenceu a continuar por mais um tempo no trabalho. O problema é que se convencer de algo que já perdeu o sentido para você é tarefa perdida. O que se aproximava de mim na velocidade de um trem-bala era o burnout, a síndrome do esgotamento. Eu precisava fazer alguma coisa.

Caminhadas

homem caminhando, close nos pés

Patrick Santos: “Andar, além dos benefícios físicos, me ajudava a engrenar os pensamentos”.          Crédito: Marko Nikolic | IStock

Existe um provérbio grego que diz que “começar já é metade da ação”. Ainda inseguro para tomar uma decisão sobre meu futuro, comecei a incorporar no dia a dia práticas que pudessem me ajudar a ter mais equilíbrio. O primeiro passo, literalmente, foi caminhar. No começo, o trajeto era só até o metrô, por volta de 800 metros. Depois de algumas semanas, eu já ia de casa ao trabalho a pé, cinco quilômetros em uma hora. Andar, além dos benefícios físicos, me ajudava a engrenar os pensamentos e abrir um campo de percepção mais sutil para que algo me intuísse o caminho. Troquei também minhas horas de almoço por tardes nas livrarias. Ler me conectava com outros mundos e realidades. E, assim, eu me li em muitos livros.

Com o tempo, fui percebendo que tudo bem o que estava acontecendo comigo e que talvez estivesse na hora mesmo de fechar um ciclo. A vida conversa com a gente o tempo todo. Só precisamos estar atentos e agir.

Pausa

Depois de gastar muito sola de sapato entre idas e vindas e de quase me tornar um andarilho urbano, senti-me pronto para fazer um novo movimento na vida. Tirei um sabático, a melhor definição que encontrei para dizer que simplesmente precisava parar, abrir espaço para o inusitado.

Comecei desmistificando o termo. Está no imaginário de muitas pessoas que em um “sabático” é preciso fazer algo de extraordinário, como cruzar oceanos em veleiro ou meditar nas montanhas do Tibet… Não fiz nada disso. Subindo e descendo as ladeiras do meu bairro, fui em busca de um outro tipo de viagem: um mergulho interno, muito mais barato e transformador. Eu conto um pouco essa história no meu livro, o 45 Do Primeiro Tempo  — o que o sabático me ensinou sobre vida e carreira (Literare Books). Passados três anos, minha vida mudou.

O tempo do tempo 

Desacelerar me fez ter uma outra relação com o tempo e gastá-lo com coisas que me fazem mais sentido. Uma delas é estar mais ao lado das pessoas que amo. Não abro mão de visitar minha avó, aquela do trava-língua do começo do texto. Dona Nena, hoje com 90 anos, tem uma vida bem limitada depois de um AVC que lhe tirou os movimentos de um lado do corpo.

Dia desses, sentado ao pé de sua cama, perguntei-lhe o que mais ela sente falta nos dias de hoje, quando passa a maior parte do tempo deitada em uma cama. Minha avó silenciou por alguns segundos, correu os olhos pelos galhos da primavera enroscada na janela e me disse: “Sinto falta do cheirinho do café fresco ao pé do fogão à lenha”.

A vida está no simples. Que tal uma pausa para o café?


PATRICK SANTOS é jornalista, escritor e apresentador do podcast 45 Do Primeiro Tempo. Depois do sabático em 2018, não abre mão de pausas para o café. Costuma também andar muito pela cidade e, às vezes, é confundido com Forrest Gump. 

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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