Sons que marcaram a minha vida
Você tem algum som que marcou a sua vida? Reinaldo Polito relembra memórias especiais que trazem paz para o seu ser e, como presente, também ajudam a adormecer Tenho um hábito que me dá muito prazer. Ao me deitar, ligo a TV no YouTube e busco sons de chuva e trens. Há alguns áudios […]
Você tem algum som que marcou a sua vida? Reinaldo Polito relembra memórias especiais que trazem paz para o seu ser e, como presente, também ajudam a adormecer
Tenho um hábito que me dá muito prazer. Ao me deitar, ligo a TV no YouTube e busco sons de chuva e trens. Há alguns áudios que tocam apenas o som da chuva, outros apenas o de trens, e também aqueles que possuem os dois, simultaneamente.
Pensei que só eu possuía essa mania. Fiquei surpreso, entretanto, ao descobrir que em alguns casos há centenas de milhares de acessos. Ou seja, muita gente é embalada no mundo todo com esses sons. Os mais procurados são aqueles que, depois de poucos minutos, deixam a tela preta, sem nenhuma imagem. Eu também tenho essa preferência, já que a luz da TV pode atrapalhar o sono.
Tudo começou na infância
Não sei a causa de tantas pessoas buscarem os mesmos sons. No meu caso, essa é uma história que remonta à época de infância. Na cidade onde eu morava, Araraquara, no interior de São Paulo, não havia televisão, exceto em uma casa ou outra mais aquinhoada. No meu bairro, por exemplo, só duas famílias possuíam esse privilégio. Por esse motivo, todos iam cedo para a cama. Depois das nove horas da noite quase ninguém ficava nas ruas.
A estrada de ferro estava localizada a menos de três quilômetros da minha casa. Logo depois que o trem saía da estação, passava por uma curva bem acentuada. Naquele local o maquinista tocava o apito. Era impressionante a pontualidade – 22h. Não adiantava, nem atrasava. Muitos acertavam o relógio pelo apito do trem.
Na minha casa, por exemplo, o apito era praticamente simultâneo com as badaladas do carrilhão que ficava na sala de jantar. Uma peça Junghans do início dos anos 1900, que tocava a melodia Westminster, semelhante ao do Big Ben instalado na sede do Parlamento Britânico, em Londres. Esse relógio está com a nossa família até hoje, funcionando com a mesma perfeição.
Pegava no sono com facilidade
Logo após a curva havia uma subida íngreme. Por isso, depois de apitar, a locomotiva precisava acelerar com mais força para cumprir aquele trajeto. Assim, debaixo do lençol, observando os picomans grudados no telhado sem forro, o som me levava de forma agradável aos braços de Morfeu. Era tão prazeroso que ultrapassado aquele trecho eu já havia adormecido.
Com sorte, algumas vezes, nesse horário também chovia. A água batia no teto e uns pingos bem fininhos rompiam a proteção das telhas e chegavam até mim. Não me lembro de ter tido sensação mais agradável. O apito do trem, o som da locomotiva e dos vagões sobre os trilhos e a “música” que vinha da chuva batendo no telhado.
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Uma paixão que perdura
Até hoje sou apaixonado por trens. Além de comprar alguns modelos maravilhosos em diversas partes do mundo, ganhei outros de alunos que trabalham em empresas ferroviárias. Quando ficam sabendo da minha paixão por esse transporte, fazem questão de me presentear com miniaturas de locomotivas e vagões. Estão todos expostos bem aqui na minha frente. De certa forma, como escrevo muito, acabam por servir de inspiração para os meus textos.
Quando vou ao exterior, sempre que posso, viajo de um país ao outro de trem. O passeio se torna mais agradável. Não foram poucas as vezes em que aproveitei para escrever artigos e até capítulos de livros. Hoje, quando vejo esses textos impressos, ou disponíveis nos portais da internet, me lembro perfeitamente do momento da viagem em que os redigi.
Coincidências agradáveis
Houve também uma grande coincidência. Tive a oportunidade de ministrar muitos cursos na ALL (América Latina Logística), em Curitiba, no Paraná. Na época era a maior empresa independente de logística da América Latina. Eles atuavam na Malha Sul do país, com a concessão da Rede Ferroviária Federal. Hoje pertencem a Rumo.
Nos intervalos e no horário do almoço, eu fazia tudo rapidinho para ter tempo de ir até as oficinas, que ficavam próximas da sala de treinamento, só para ver os operários trabalharem na manutenção dos trens. Conversava com eles como se fosse da casa. Uma alegria indescritível.
Fato semelhante ocorreu ao ministrar cursos na MRS (Minas, Rio, São Paulo) em Juiz de Fora, Minas Gerais. Também nesse caso os funcionários se mostraram surpresos com a minha ligação com aquele meio de transporte. Dali também trouxe algumas miniaturas de vagões como recordação.
Por tudo o que contei aqui, imagino que seja simples entender o meu fascínio pelos sons da chuva e dos trens que me ajudam a pegar no sono com mais facilidade. Ao constatar, todavia, essas centenas de milhares de pessoas que agem da mesma maneira, fico pensando qual terá sido a motivação de cada uma delas.
Será que também tiveram uma infância parecida com a minha? Talvez tenham tido uma pessoa querida, como o pai ou o avô, que trabalharam em alguma estrada de ferro. Pode ser também que gostem de usar o transporte ferroviário, e esses sons gravados ajudem a recordar os bons momentos que tiveram pelo mundo afora. Vai saber!
O que não tenho dúvida, porém, é que, até sem nos conhecermos, temos algo em comum, que nos ajuda a viver melhor.
REINALDO POLITO (@polito) é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é “Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”.
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