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Sobre criar expectativas
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Nem tudo acontece como, de fato, desejamos. É aí que entra a expectativa. Mas a frustração também é um sentimento de quem sonha, cai e levanta, colecionando aventuras na vida

Quando eu era estudante, certa vez ouvi: “você precisa aprender que as coisas não são como queremos que sejam. Elas são como são.” Quem me disse isso foi uma professora da faculdade. E não de filosofia. De farmacologia. A bronca ressoa em minha memória até hoje. Eu era um estudante secundarista de medicina e tinha pretensões de vir a ser um pesquisador. Com esse sonho consegui estagiar em vários laboratórios da faculdade, especialmente os de fisiologia, histologia e bioquímica. E foi muito bom. Aprendi muito. Talvez menos sobre ciência e mais sobre disciplina, paciência, cuidado e, principalmente, sobre gestão de expectativas.

Aquela pesquisa era sobre o presumido poder bactericida dos alcaloides presentes na Ilex paraguariensis, a conhecida erva-mate, muito usada no Sul do Brasil. A teoria (ou seja, a ideia concebida a priori), era de que os microrganismos não suportariam a alteração metabólica promovida pelo meio de cultura modificado. Em outras palavras, ao tomar chá ou chimarrão, você estaria matando possíveis bactérias. Só que não foi o que aconteceu. As bactérias gostaram do chá. Cresceram e se multiplicaram mais rápido. Eu até as imaginava sorrindo de satisfação.

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A frustração da expectativa

expectativa

Foi quando manifestei minha decepção para a professora Azizi. E então tive que ouvir dela que uma pesquisa científica existe para verificar o que acontece em determinada situação, e não para comprovar o que já se achava que ia acontecer. A pesquisa verifica, não certifica. Permite a compreensão dos fenômenos naturais, que têm suas leis próprias, e estão se lixando para nossas opiniões ou desejos. “Se você quer ser cientista um dia, pare de apenas tentar provar suas teorias”, concluiu a mestra.

Nunca me esqueci daquela experiência. Aprendi, no laboratório, o significado real e o sabor amargo da frustração de expectativa. E muito me lembro daquele acontecimento a cada vez que espero muito por algo, e o que acaba acontecendo é o oposto. O destino às vezes assume a forma daquela placa de vidro com um círculo avermelhado com pontos brancos que eu levei ao microscópio, para ver as bactérias acenando safadas para meu olho inexperiente.

Reviver, às vezes, o sentimento da expectativa

Guardadas as proporções, sinto que às vezes revivo aquele sentimento. Recentemente passei por isso. Acordei cedo em uma segunda-feira cheia de compromissos e, claro, de expectativas. Pelo menos quatro coisas boas deveriam acontecer naquele dia, duas ligadas ao trabalho, um compromisso social e a chegada do último tablet comprado pelo site do fabricante (só quem gosta de gadgets vai me entender).

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Pois bem, a tal encomenda não chegou, as duas reuniões foram totalmente inconclusivas e a festa a que fui no final do dia foi chata e quase desagradável. Pode? Deu tudo errado naquele dia. Já aconteceu com você tamanha catástrofe? Você deve saber do que estou falando. E mais uma vez me  lembrei da professora dizendo que, por mais inteligentes, lúcidos e preparados que sejamos, haverá dias em que as coisas não serão como desejamos. Serão como são. E pronto. Longe de mim transformar essa história em um tributo ao conformismo. Não faço o tipo que se conforma, ou que tributa o insucesso ao destino. Não mesmo. Sou mais do tipo que retira energia das dificuldades, e que acredita que o insucesso é uma grande oportunidade de aprendizado. Sem qualquer romantismo.

E me ponho a pensar sobre qual é a fonte principal da expectativa. Será apenas o desejo? Acredito que, na maioria das vezes, é, sim. Quando desejamos fortemente alguma coisa, criamos uma ansiedade alta com relação à sua realização. Isso é absolutamente natural, entretanto é bom lembrar que o sentimento de expectativa só existe na ausência da realidade. Em outras palavras, criamos uma ilusão sobre algo que ainda não existe e que desejamos (ou esperamos) que venha a existir. E é aí que mora o perigo, pois o desejo pode ser maior do que a viabilidade do fato. O educador Paulo Freire usava a bela expressão “o inédito viável” para se referir a sonhos que devemos ter, grandes, mas com forte conexão com a realidade. De pouco adianta sonhar o inviável, o impossível.

Planejar bem para improvisar melhor

A expectativa sempre será uma suposição incerta, com alto grau de possibilidade frustradora. O que fazer, então? Devemos, ou não, acalentar expectativas? O perigo de tê-las é a desilusão. O perigo de não as ter, é o conformismo. Pessoalmente, prefiro conviver com a desilusão, pois ela é passageira. Dura até o momento em que a próxima expectativa é criada. Desilusão, frustração, tristeza, desesperança, todos esses são sentimentos próprios da existência das pessoas que sonham, tentam, realizam ou não, ganham e perdem, caem e levantam, e seguem pela vida, colecionando aventuras. Esses são sentimentos com os quais podemos lidar, desde que tenhamos estrutura interior.

O aprendizado, com relação à expectativa, é que ela deve ser gerada pelo desejo, mas gestada pela realidade. “O que pode dar errado?” – essa é uma pergunta, que em geral não fazemos, quando o desejo é maior que a consciência, a qual deixamos de lado, afastada com desprezo, por ser considerada desmancha-prazeres.

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Mas ela não é isso. Ao contrário, a consciência é uma aliada do sucesso, quando cria as condições ideais para a realização do desejado, para a concretização da expectativa. Avaliar o que pode dar errado cria um caminho mais seguro, pois passamos a dispor de ferramentas para corrigir os defeitos do trajeto. “Precisamos planejar bem para poder improvisar melhor”, disse Winston Churchill. E disso ele entendia.

Sobre aquela pesquisa de laboratório, que não foi como eu esperava, mas que foi como deveria ser, acabou me dando insumos para outra, ainda melhor. O óbvio incremento do metabolismo das bactérias originou outro protocolo, de verificação do efeito sobre mamíferos, inclusive o ser humano, aumentando a resistência às infecções. Acabei chegando aonde queria, por um caminho que não imaginava. O resultado foi um trabalho publicado, apreciado e até premiado.Não era essa a expectativa, mas, garanto, foi muito melhor que a original. Assim é a vida. Só não tem expectativas quem não tem sonhos e desejos. E só não aproveita a frustração que não entende a dinâmica própria das coisas.

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Eugenio Mussak escreve neste espaço todos os meses, e afirma ter muito orgulho de suas “rolinhas”.

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