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Sertão e Meu Ser-tão: no rastro de Guimarães Rosa
Trecho dos Caminhos de Rosa. Regina Huston/ Arquivo pessoal
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“A escrita é meu lugar para ser honesta sobre como eu me sinto.
Às vezes é o único jeito de saber o que eu estou sentindo.
Ninguém pode tirar a escrita de você.
Ou dizer que suas palavras não têm valor.
Nós temos valor e nossas palavras têm valor.
Porque são nossas.”

Essa fala é da personagem principal da série Maid, da Netflix, inspirada num best-seller autobiográfico que conta a batalha de Alex, uma jovem norte-americana, para construir um futuro para ela e para a filha pequena. Ao longo da história, descobrimos que Alex tem a escrita como um caminho de resgate do próprio poder.

Foi assistindo a Maid que me dei conta do princípio terapêutico da escrita e abri os olhos para escritores de viagem*, especialmente os independentes ou não super famosos. Assim, lê-los tornou-se um hobby e um jeito de viajar.

Peregrinação como busca de sentido

Recentemente, conheci uma dessas escritoras quando caiu em minhas mãos o livro Meu Ser-tão (ed.Mundo das Letras). Regina Hostin, jornalista e consultora em comunicação, narra sua peregrinação pela rota Caminhos de Rosa, que serpenteia no sertão mineiro.

Capa do livro Meu Ser-tão de Regina Hostin

Capa do livro Meu Ser-tão. Divulgação

Já no início, Regina se revela uma buscadora — característica que tanto me fascina nesses autores de histórias de viagem. No passado, ela já havia saído pelo mundo numa busca por sentido desencadeada pela insatisfação com o mundo do trabalho. E resolvido a questão com um período sabático na Índia, passando pelos Himalaias e pela Schumacher College, escola na Inglaterra que propõe um aprendizado que integra “mãos, mente e coração” com cursos holísticos.

De volta ao Brasil, e atraída pelo sertão desde a juventude — quando leu Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos sobre a vida miserável de uma família de retirantes no sertão nordestino —, Regina encontra na rota mineira uma forma de se aproximar da mítica região geográfica e entender um pouco da fascinação que nutre por ela.

O que é a peregrinação Caminhos de Rosa

A rota Caminhos de Rosa é composta por cenários que inspiraram Guimarães Rosa, um dos maiores romancistas brasileiros. Em maio de 1952, ele partiu numa comitiva de vaqueiros conduzindo uma boiada por 10 dias no sertão mineiro. Rosa carregou uma caderneta pendurada no pescoço e ali fez anotações que serviram de base para 2 de suas mais importantes obras: Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.

Em 2014, o dono de uma propriedade na região idealizou uma forma de trazer a experiência para o nosso tempo e demarcou o roteiro para caminhantes, ciclistas e maratonistas. A ideia é transmitir a quem faz a travessia a mesma emoção que os vaqueiros e Rosa sentiram há anos, com as angústias e as alegrias que o sertão desperta. Em especial, o apreço pela vida que ele traz à tona quando, apesar da seca, da aridez, do vento e da poeira surgem flores e frutos.

SAIBA MAIS 

O que descobri ao percorrer os Caminhos de Rosa, no sertão de Minas Gerais

O significado de sertão e ser-tão

E é nessa andança que a peregrina-roseana vai notando semelhanças e fazendo paralelos entre o jeito de ser do sertão e o do ser humano. Suas contradições e intensidades. Suas reações espontâneas e às vezes até brutas quando a sobrevivência é ameaçada.

Enquanto avança passo a passo, descobre que o sertão é “mais um sentimento do que uma delimitação geográfica”. Por isso é que ela apelida seu sertão de “ser-tão”.

Quem já viajou caminhando, sendo peregrino, entende.

Quando se é peregrino, se vive momentos onde só o agora importa. E o que seria mais conveniente no momento do agora do que ser quem a gente é, sem aquelas máscaras do dia a dia? Ser tão a gente mesmo… Longe de casa, das convenções sociais, da fuga através das telas, o que mais nos resta a fazer a não ser…ser tão somente o que somos?

Quem já viajou sozinho também entende. Porque para as novas conexões que um viajante solitário fará — com pessoas ou lugares — não importa quem ele foi no passado, o que fez lá e o que possuiu. Só importa o agora e o para frente.

Um guia sobre como é uma viagem de peregrinação no sertão

Antes de mais nada, Meu Ser-tão parece não ter a pretensão de convencer o leitor a fazer os Caminhos de Rosa, embora funcione muito bem como palavra de incentivo.

Também não é um guia com o passo a passo detalhado, apesar de trazer uma lista do que é preciso para encarar a pernada.

Definitivamente, Meu Ser-tão também não nos dá a sensação de estar caminhando lado a lado com Regina e os peregrinos. Ele não nos transporta ao caminho. Não, não. Aqui é mais como quando uma amiga chega de viagem e conta como foi, desabafando e aguçando a curiosidade. Mesmo!

Por fim, a gente fecha o livro e tem vontade de ir também, já com certa ideia do que nos espera. Regina nos abriu o caminho. E também usou sua habilidade de escrita para ser honesta sobre como se sentiu.

E é tão adequado que ela tenha utilizado o talento com letras para contar sobre a viagem… Porque, afinal, a rota Caminhos de Rosa nasceu por causa da literatura. Duvido alguém fechar Meu Ser-tão e não correr na estante para relembrar ou conhecer a obra de Guimarães Rosa.

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Reflexões peregrinas

Por fim, a autora não deixa de passar por aquelas lições e situações — engraçadas, dramáticas, embaraçosas — que quase todo peregrino já conheceu ou vai conhecer:

  • Como os indignados que apontam o caminho mais curto pelo asfalto.
  • Como nossos sentimentos são testados quando o corpo cansa.
  • Como num primeiro momento dormir em lugar diferente é desafiador e depois qualquer canto sossegado dá no melhor sono da vida.
  • Como escolher o que levar continua sendo um difícil exercício de desapego.
  • Como cada um carrega uma bagagem invisível. E como ela entra em rebuliço conforme se movimenta.
  • Como cada improviso é legal!
  • Como a conexão com pessoas e lugares é inevitável e a desconexão, obrigatória. E como isso mexe com as emoções.
  • Como sol demais na cuca castiga a mente, bem como subidas repentinas, estrada com pedregulho e pouca sombra — e como isso interfere na hora de “dar um pulinho para a foto, se abaixar para pegar algo, ouvir uma história muito longa em pé…”
  • Como ficar com a garrafinha d’água vazia nos lembra o quanto temos à nossa disposição no dia a dia: sofá, sombra, delivery…
  • Como cada um faz o mesmo caminho, mas com motivos, reações e ritmos diferentes. Tem a moça que desiste, tem o peregrino que leva o travesseiro de casa, tem o caminhante experiente para quem a gente corre quando não sabe o que fazer, quando tem bolha ou quando precisa de remédio…

Regina Hostin fotografou os Caminhos de Rosa em forma de palavras, bem disse uma andarilha. E quem ler o livro notará que peregrinar não é sinônimo de caminhar. É viver outra vida temporariamente.

(*Se você for autor de um livro de viagem e quiser enviá-lo para mim, entre em contato pelo meu perfil — pode ser a oportunidade de aparecer aqui na coluna.)

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