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Sêneca e as lições para encarar a vida de frente
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Não temos controle sobre o nosso destino. Com sorte, nada de tão terrível irá ocorrer conosco. Mas se acontecer o pior, a melhor maneira de amenizar os golpes. Sêneca concorda com isso.


Nos últimos anos tenho notado — e não apenas entre aqueles que buscam aconselhamento filosófico —  um crescente interesse pelo estoico Sêneca. O estoicismo sempre foi considerado uma filosofia para poucos: é sabido que o filósofo Michel de Montaigne tinha uma citação de Epiteto — outro estoico famoso —  esculpida no teto de sua casa. Thomas Jefferson tinha Sêneca como leitura diária. Bill Clinton, pelo menos uma vez por ano, lê Meditações, de Marco Aurélio, que foi, simultaneamente, imperador e filósofo estoico. Mas atualmente, com a busca fanática pela felicidade, pode causar alguma estranheza. Não deveria.

Hoje, talvez mais do que em qualquer outra época, há muitas razões para ter Sêneca na mesa de cabeceira. Tanto Cartas de um Estoico quanto As Cartas a Lucílio, por exemplo, são manuais sobre a arte de viver. Além da leitura fácil, é um prazer abrir o livro, ler uma carta, e imaginar que ela foi escrita para nós. Sendo uma adepta da filosofia para a vida de todos os dias, considero-as uma joia preciosa. Tudo o que experimentamos na vida, mereceu o olhar de Sêneca.

Como funciona o estoicismo?

E sobre o caráter pesado e pessimista do estoicismo? Não é verdadeiro. Sêneca não vai recomendar que você leve uma vida de privação e miséria, sem alegria e sem prazeres. Primeiro porque o estoicismo não comporta essa redução. E, para além disso, Sêneca — apesar de estoico assumido — serve-se de muitos ingredientes do epicurismo  — uma espécie de tempero, à base de ervas, bem entendido. Talvez a conotação árdua venha do fato de que o estoicismo é muito útil nas adversidades. É como uma arma para tempos de guerra ou uma proteção para períodos em que precisamos cobrir a pele humana. Mas, ele não é só isso. Também é possível apreciar Sêneca em tempos de paz. A força e a beleza das suas palavras, traz alento e força. Mostra um caminho claro para a melhor atitude e é um convite para superarmos as nossas próprias limitações.

Detalhes sobre Sêneca

Sêneca é melancólico e depressivo? É preciso fazer justiça. Lúcio Aneu Sêneca viveu em tempos difíceis. No primeiro século da nossa era, Roma era um palco instável e violento. O filósofo teve de lidar com pessoas caprichosas e poderosas, enfrentou o exílio, a doença e, por fim, a condenação à morte. Sua carreira política foi construída durante uma sucessão de líderes tirânicos e imprevisíveis. Ele viveu, literalmente, sem saber o dia de amanhã. No ano de 49 d.C. Sêneca teve de assumir — contra a sua vontade —  o cargo mais ingrato da administração do império: o de tutor de um garoto de 12 anos, chamado Lucius Ahenobarbus, o futuro Imperador Nero.

Logo ficou claro que Nero era um psicopata homicida. Com poderes absolutos, o soberano tinha por hobby “convidar” seus desafetos — ou donzelas abduzidas nas ruas — para as câmaras subterrâneas do seu palácio, onde ele friamente os executava. Outro hábito de Nero era o combo crueldade e espetáculo, como decapitar, desmembrar e lançar pessoas vivas aos leões e crocodilos. E qual era o crime dessas vítimas? Salvo raras exceções, nenhum. Gladiadores eram lançados ao lobos, simplesmente porque não proporcionaram um belo espetáculo ao imperador. Paranoico e obsessivo, às vezes, bastava um simples rumor para desencadear sua ira.

Transportando para os dias de hoje, seria como uma condenação à morte por conta de uma fake news. Como é natural, Sêneca não era otimista e tentou se afastar da corte. Por duas vezes, entregou ao imperador sua carta de demissão. Por duas vezes, ela foi recusada com um abraço. E o argumento era o de que Nero preferiria morrer a fazer mal a seu tutor. Porém, nada do que Sêneca via confirmava essas palavras.

Como continuarmos? A pergunta do passado, presente e futuro

Ora, guardada as devidas proporções, vivemos tempos conturbados. E com a ausência de uma liderança política credível, não estamos apenas no caos, também estamos à deriva. A sensação de instabilidade e perigo iminente sãos os mesmos experimentados por Sêneca. Hoje fazemos a mesma pergunta que Sêneca fez no seu tempo. Diante de uma realidade que não temos o mínimo controle, como continuarmos à tona?

Sêneca nos convida a aceitar a vida como ela é, fincar os dois pés no chão e as duas mãos no leme. É aqui, no domínio das emoções que reside a grandiosidade do pensamento de Sêneca. Se você fizer uma lista do que amarga a vida, você vai ver raiva, estresse, descontrole, frustração, desilusão… Sêneca ensina a administra-las. Um exemplo simples: você está frustrado e irado. Mas a culpa não é sua, é do trânsito. As pessoas não sabem dirigir, fazem absurdos, colocam a vida dos outros em risco… A raiva no trânsito é um problema filosófico? É. E mais: Sêneca discorda que a raiva é irracional e incontrolável, pelo contrário: a raiva é muito racional.

Ela nasce das ideias racionais que temos sobre o mundo. E pior: ideias racionais otimistas. As pessoas criam expectativas elevadas, a realidade não as confirma, surge a sensação de surpresa e injustiça e, a partir daqui, a raiva. A verdade é que a confusão, a incompetência e a barbeiragem no transito não são injustas, nem surpreendentes — são fatos previsíveis da vida. Quem se zanga com elas tem expectativas erradas em relação ao mundo.

De acordo com Sêneca, ajuste-se à realidade da vida

E aqui a proposta de Sêneca: seja mais pessimista em relação ao trânsito. Veja bem: usei o “pessimista” por uma questão didática. Na verdade, o que Sêneca quer dizer é que devemos ajustar a nossa visão à realidade da vida. O que ele propõe é que se aceitarmos que nem todos sabem dirigir bem, não vamos ficar surpreendidos e não vamos nos descontrolar quando nos depararmos com eles. O máximo que cabe manifestar é uma expressão de rabugice, “olha lá mais um”, ao invés de espumar de raiva e perseguir condutores.

Sêneca acreditava que um dos motivos da raiva, e também da frustração, do desapontamento, do estresse — e muitos outros sentimentos negativos— é imaginarmos que tudo será sempre do jeito que queremos, que somos capazes de moldar o mundo segundo os nossos desejos.

Não somos. Há muitas coisas que a única ação que nos cabe é aceitar. Nem sempre temos liberdade para mudá-las. Sêneca ilustrar essa condição da vida com uma comparação simples. Para ele, somos como cães amarrados a uma carroça em movimento. A corda é longa o bastante para dar alguma liberdade ao cão, mas não para permitir que ele vá além do seu comprimento. O cão logo se dá conta de que, para aumentar o seu conforto, ele precisa, algumas vezes, se contentar em seguir a carroça. Mesmo que ele não queira, essa é a melhor alternativa. Além da inutilidade do gesto, o cão vai em sofrimento, estrangulado pela superioridade da carroça. A síntese desse ensinamento de Sêneca é a sua famosa máxima “o destino guia quem o segue de bom grado, mas arrasta quem se recusa a segui-lo”.

Nós sabemos o que podemos. E o que não podemos também

Mas levamos uma vantagem sobre os animais, somos dotados de razão e essa nos dá um trunfo: a capacidade de perceber o que podemos e o que não podemos mudar. Dessa forma, ainda temos mais um bônus da razão: podemos mudar a nossa atitude em relação ao que não é possível mudar. Sêneca acredita que essa dupla liberdade é o que nos distingue como humanos e que ela pode ser alcançada com a prática filosófica. Pode-se argumentar que o estoicismo foi muito fácil para Sêneca. Bem-nascido e rico, a única coisa que o afligia era a perigosa cena política. É mais fácil ser plácido com dinheiro. Afinal, o dinheiro dá conforto e ampara muitas quedas. É uma imagem errada.

Observador do mundo e habituado a conviver com a alta sociedade da Roma imperial, Sêneca constatou que a riqueza torna as pessoas ainda mais frustradas e iradas, não mais calmas. E o mesmo se verifica hoje. É destaque no noticiário que uma celebridade quebrou parte da mobília do seu quarto de hotel, que a esposa do príncipe Harry berrou diante da possibilidade de um prato não ser 100% vegan, que um famoso músico fez um escândalo diante de toalhas brancas, quando esperava-as pretas.

Publius Vedius e as taças

Na sua próxima viagem, veja como se comportam os passageiros da classe executiva e econômica e compare. Há sempre um irado na executiva bradando alguma exigência. E Sêneca também aponta casos absurdos como esses no seu tempo. Sabe-se que durante um exuberante banquete, um escravo quebrou uma taça de cristal. Como punição, o anfitrião, Publius Vedius, ordenou que o escravo fosse lançado para o tanque de lampreias para ser devorado vivo. Mesmo para aqueles tempos, o castigo era considerado exagerado.

Quando Publius tentou implementar a punição, foi travado por um dos convidados: o Imperador Augusto em pessoa. Indignado, o soberano ordenou que todos os valiosos cálices do anfitrião fossem quebrados. Qual a constatação de Sêneca? A ira de Vedius vinha da sua crença de que no mundo, taças valiosas não se quebram. E talvez, essa também foi a constatação de Augusto. E para que ele aprendesse a lição, todos os seus cálices foram reduzidos a pedaços bem diante dos seus olhos.

Prepare-se para o pior, mas não elimine o otimismo. É o que diz Sêneca

Temos de concordar. Os ricos são mais otimistas do que os pobres. Quanto mais ricos, maiores são as expectativas porque eles acreditam que o dinheiro os protegem dos reveses e das frustrações. Claro. Todos nós — em menor ou maior grau — reagimos mal às frustrações. Mas já que nem o dinheiro resolve, o melhor é reduzir as expectativas. E aqui alguns poderão questionar que se não esperarmos coisas boas, caímos na apatia.

Entendam: a ideia não é eliminar o otimismo. O que Sêneca ensina é que devemos vislumbrar cenários positivos e negativos para minimizar o fator surpresa. O estresse é um exemplo. Não adianta agonizar e aumentar a frequência cardíaca durante o tempo de uma reunião. Aceite que ela durará duas horas e se prepare. O estressante é aquilo que nos apanha de surpresa. Se você admite que o projeto pode ser recusado, que o fornecedor pode se atrasar… Se acaso o pior acontecer, você estará preparado.

Vai dar tudo certo?

E as dicas de auto ajuda, o consolo de amigos de que “tudo vai dar certo”? Sêneca é contra. Para ele, esse apoio pode ser cruel, pois deixa que o outro fique desarmado diante do infortúnio. Quer ajudar um amigo? Faça uma ronda sobre os eventuais cenários. Mais do que pessimismo e otimismo, ele recomendava a visão realista. Muitas vezes superestimamos a nossa presença no mundo e a nossa capacidade de ação.

Para esse ensinamento Sêneca invoca o poder da deusa Fortuna. Também denominada “Destino”, ela é representada por uma mulher com os olhos vendados, portando numa mão uma cornucópia cheia de moedas de ouro e, na outra, um leme. A cornucópia simboliza o seu poder de conceder riquezas, favores e todas as coisas boas da vida; na outra, o leme, indicando que basta um leve toque para destruir vidas. Repentinamente, podemos perder o emprego, a casa, o cônjuge amado. Acontecimentos bons e ruins fazem parte da vida e devemos aceitá-los com a máxima serenidade possível,  sem desatinos e gritos.

Essa é uma realidade que não podemos mudar. Mesmo quando tudo parece calmo, pode emergir o desastre. Não temos controle sobre o nosso destino. Com sorte, nada de tão terrível irá ocorrer conosco. Mas se acontecer o pior, a melhor maneira de amenizar os golpes, é estarmos psicologicamente preparados. Se Sêneca fosse o nosso contemporâneo, provavelmente, ele recomendaria o popular “aceita que dói menos”.


Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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