Precisamos recriar o jogo da vida
Se a vida fosse um jogo, seria um jogo justo para todos?
Se a vida fosse um jogo, seria um jogo justo para todos?
Tem quem acredite em meritocracia. Eu já acreditei. Acreditava quando mais novo que com esforço você chega a qualquer lugar. A Xuxa me convenceu disso em Lua de Cristal. Tudo que eu quiser. Lembra? Eu acreditei, até conhecer pessoas que se esforçaram a vida toda e não conquistaram o que queriam. Essas pessoas lutaram dia a dia, mas nunca alcançaram o mérito. Gente que descobriu com frustração e lágrima o problema dessa equação.
Uma equação que só funciona numa teoria bem ideal, tipo aquelas de física que você calcula a velocidade de um jeito bem fácil, multiplicando a distância e o tempo. Fácil e errada, quando se trata de vida real, porque ela não leva em consideração o atrito, o semáforo, a blitz e os buracos que tem no asfalto fora da zona sul.
Sem verdade
Contudo, apesar de tantas variáveis, a gente continua ensinando a equação. Sem se preocupar com as pessoas para as quais ela tem maiores chances de dar um resultado bem diferente do esperado. Assim, como explicar para quem acorda todos os dias às 4h da manhã para pegar o metrô ou ônibus pra trabalhar que, ao contrário do que dizem alguns gurus do empreendedorismo, o segredo para ficar rico não é acordar cedo?
Qual justificativa a gente apresenta para uma mulher – com o currículo melhor, com mais experiências profissionais e todas as competências necessárias para uma vaga – que viu a posição desejada ser preenchida por um homem?
Cartas de revés
Você se lembra do Jogo da Vida? Clássico jogo de tabuleiro criado na década de 1960 e que simulava a vida real. Sabe aquelas cartas do jogo que te mandavam voltar casas, esperar rodadas ou ir para prisão, sem motivo algum? Pois é, elas também existem fora do tabuleiro. Tem gente que joga com a mão cheia dessas cartas.
Pessoas negras, periféricas, mulheres, LGBTQIA+, com alguma deficiência ou limitação. Pessoas sem acesso a uma boa escola, sem cursinho de inglês na infância, sem balé ou judô. Com museus e parques público a quilômetros de suas casas. Pessoas sem acesso a internet ou com uma internet que dura poucas horas de crédito. Ou é tão ruim que parece de modem discado nos anos 1990.
Boa educação
Eu morei na periferia de Belo Horizonte e de Contagem durante toda minha infância, estudei em escola pública até a oitava série, sou filho de mãe solo. Ter carne para o almoço em casa era raro. A primeira vez que fui ao cinema foi graças a minha tia. Minha mãe guardava maçãs do seu lanche no trabalho para gente comer alguma fruta. Ela lutou a vida toda para que tivéssemos uma boa educação.
E quando um golpe de sorte mudou os rumos do seu emprego, devido uma mudança no modelo de contratação do hospital que ela trabalhava, nossa vida melhorou. A sorte compensando o revés. Passamos a nos alimentar melhor, a ter acesso a opções de lazer, pude fazer curso de informática, estudar em escola particular e conhecer pessoas que criaram pontes para que eu pudesse seguir em frente.
Incentivo na escola
Duas professoras em especial fizeram isso. Uma, de português, que me incentivava a escrever e comentava cada uma das minhas redações. No último dia de aula, ela colocou uma carta dentro do meu livro, que dizia “Fernando Pessoa escreveu que tudo vale a pena, quando a alma não é pequena. E a sua alma é grande”. Na mesma semana, outra professora, tinha me dito para ir estudar numa escola técnica, porque eu era bom e tinha talento para informática.
A seguir, a escola técnica me levou para um estágio que mudou minha vida. Ganhava dois salários mínimos, recebia auxílio alimentação que ia inteiro para minha mãe. No trabalho me davam tanta responsabilidade que até hoje penso a loucura que era deixar um garoto de 15 anos preparar a reunião diária de diretoria de uma das maiores empresas de energia do Brasil. Meu chefe me dizia que cada senha e cada chave que ele me entregasse era sinal de mais responsabilidades. Quando o estágio terminou, dois anos depois, eu tinha chaves como São Pedro e senhas que precisava de um bloco de notas para não esquecer.
É uma questão de sorte
Quando olho para trás, não vejo apenas méritos e conquistas. Vejo momentos únicos, que só aconteceram por uma conjunção de fatores e que por uma obra do acaso eu estava lá. Em uma palavra: sorte. Meu papel, o grande papel que tive, foi estar preparado para cada uma dessas situações. Por isso, a equação que me trouxe aqui é mais parecida com o Jogo da Vida. Envolve mérito, mas também sorte e privilégio.
Não considerar qualquer uma dessas partes ao narrar minha história é perigoso. O perigo de acreditar que dependeu só de mim. Ou então de não acreditar na importância do esforço, porque tudo já tinha sido definido pelos reveses ou privilégios. E um último, de não estar atento às oportunidades sopradas pelo acaso, destino ou sorte.
Um novo jogo
Dessa forma, no jogo da nossa vida, a sorte é como a roleta. Em relação a ela, o que dá para fazer é se preparar, sabendo que em algumas horas vamos parar em casas ruins, em outros, nas boas. O esforço é a habilidade de jogar. Esse é individual, pode melhorar a cada nova rodada e depende totalmente de cada um de nós.
Já o privilégio, a ausência ou um pequeno número de cartas de revés, depende de quem combinou as regras do jogo e distribuiu as cartas no início. Quem foi? Fomos nós, como sociedade. Somos nós, conscientes da desigualdade, que precisamos rever as regras, redistribuir as cartas e tornar o jogo mais justo.
O que é justo
Para mim, para você, para pessoa que pega o trem às 4h da manhã, para quem não teve acesso ao curso de inglês, para a mulher, a pessoa negra, a LGBTQIA+. Para todos nós. Eu poderia finalizar, para combinar com os temas frequentes aqui da minha coluna, dizendo que diversidade e inclusão são bons porque aumentam a criatividade e a inovação. Geram resultados para os negócios.
Mas eu prefiro dizer apenas que é justo. Um jogo preparado para algumas pessoas perderem mais que as outras não é legal, nem de brincadeira. Também prefiro finalizar desejando habitar um futuro que é uma versão nova do jogo, com novas regras e sem cartas de revés distribuídas logo no início da partida. Aliás, o que a gente está esperando para ajudar a criar esse jogo?
TIAGO BELOTTE é fundador e curador de conhecimento no CoolHow – laboratório de educação corporativa que auxilia pessoas e negócios a se conectarem com as novas habilidades da Nova Economia. É também professor de pesquisa e análise de tendências na PUC Minas e no Uni-BH. Seu Instagram é @tiago_belotte. Escreve nesta coluna semanalmente, aos sábados.
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