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O incrível mundo sem rompimentos amorosos
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Cartas, anéis, objetos e outras provas concretas dos amores que chegaram ao fim não são apenas testemunhas da fragilidade das relações, mas também de um tempo que não existe mais

Há muito pouco tempo, o grande mal das relações eram as rupturas. Sofria-se muito e o luto demorava mais do que o necessário. Os estragos dependiam do perfil daquele que amava. Os mais sensíveis emagreciam a olhos vistos; alguns, incapazes de lidar com a realidade intolerável, refugiavam-se na alienação do álcool e das baladas. Outros, explodiam. O abandono dava-lhes para a fúria, com berros e roupas arremessadas pela janela — às vezes, já devidamente inutilizadas pela tesoura. E para alguns a revolta chegava a atingir o corpo amado. Há um caso que virou folclore no meu bairro. Quando o noivo apareceu para anunciar que o enlace marcado não aconteceria, a já não mais futura esposa ensandeceu e a aliança estendida foi recebida com vigorosas vassouradas. Desde então, a casa da ex-noiva passou a fazer parte do roteiro turístico: “Aqui vive a noiva das vassouradas”.

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Independentemente da personalidade — comedido ou expansivo — o desfecho era sempre intenso. Amava-se, apegava-se, e o rompimento era duramente sentido. O cenário era sempre uma conversa nervosa, com lágrimas à mistura. Havia as recriminações e as palavras sensatas — essas, geralmente da parte daquele que deixou de amar. Tinha ainda a dramática devolução de objetos: “eu não quero nada que me lembre você”. E, claro, o clássico consolo “Não é você, sou eu”.

Amor líquido

Hoje, velozes e virtuais tempos, o cenário é exatamente o oposto. O término de uma relação está há quilômetros de distância de ser o fim do mundo. A maioria começa e termina uma relação sem grandes dramas. E como o entra-e-sai é frequente, o ato banalizou-se. Uns com mais prática, já entram vislumbrando as razões para a saída. Quem melhor “leu” essa mudança foi o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman no seu conceito de sociedade líquida. E aqui cabe uma explicação técnica: o líquido não consegue manter a sua forma, a menos que seja forçado artificialmente, como a água em um copo, caso contrário ele derrama, espalha-se e segue sempre mudando de forma. Exatamente como o nosso mundo, hoje nada mais é sólido. “Tudo está sempre mudando, escorrendo, espalhando-se e adquirindo novas formas”, aponta Bauman.

Para o sociólogo, esse estado líquido está em tudo, inclusive nas relações, fazendo com que sejam curtas e menos frequentes. “As relações são uma sucessão de reinícios e, precisamente por isso, os finais são rápidos e indolores”, diz ele. Segundo a sua leitura, na sociedade líquida, as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser um mero acúmulo de experiências. Mas não é angustiante estar numa relação sem compromisso e sem promessas? É. Mas para ele a insegurança e a incerteza são parte estrutural — e já assumida — do sujeito moderno.

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Alguns podem pensar que é exagero ou rabugice de Bauman. Afinal, continua-se a acreditar no amor, está no cinema, no teatro. Sim — concorda Bauman — mas o amor é mais falado do que vivido e por isso vivemos um tempo de secreta angústia. “Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”.

E não nos preocupamos. Já interiorizamos que é assim mesmo, que agora o mundo e as relações são efêmeras e que nada é feito para durar. É assim mesmo.

Ficar ou namorar?

Esse formato de relação não é novo. Afinal, todos de alguma forma têm essa experiência. Quando ingressamos na vida adulta vamos experimentando. Notamos o que gostamos e o que não gostamos e a certa altura vamos interiorizando o rompimento. Ou até a relação é considerada boa, mas — há tanta gente! Não é idade para assumir compromissos. Afinal estamos na fase dos testes. E assim, vamos “ficando”, tal como a troca de pares na quadrilha junina.

Ocorre que agora, essa fase prolonga-se. E fica-se ali. E com o tempo, acomoda-se e mesmo quem quer, já não é mais capaz de avançar para a fase seguinte.  Quase não há disposição para evoluir do “ficar” para o compromisso do namoro. Por que? As razões são diversas. Há quem acredite que a fase seguinte exige muito investimento, dá trabalho. Há o argumento — cada vez mais comum — de que é muito difícil encontrar alguém que valha a pena manter em nossas vidas. E também falta disponibilidade mental para os sentimentos.

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A sociedade fixada no consumo e nas redes sociais está mais preocupada em mostrar uma vida boa, do que trabalhar para construir uma vida boa. Mostrar é mais fácil. Basta uma foto, alguns filtros e já está.  A vida verdadeira, autêntica, com objetivos e sentido, dá muito mais trabalho e talvez não seja apetecível à vista. Parecer é melhor e dá menos trabalho do que ser.

Amores virtuais

Bauman afirma que essa superficialidade é característica da sociedade de consumo e que foi extrapolada para os relacionamentos. O resultado são ligações superficiais, sem discordância, sem diálogos profundos e sem convivência real. E assim que aparece uma dificuldade — algum custo a liberdade individual, um mínimo contratempo — a relação é encerrada. Desconectamos, bloqueamos, excluímos. E aqui o ponto chave: ele afirma que o grande atrativo da internet não é a facilidade de conectar e fazer amigos. O maior atrativo é a facilidade de desconectar.

Se a vivência do amor é assim, por extensão, os rompimentos também o são. O último adeus não tem o cenário íntimo e as conversas sentidas do passado. Nem sequer exige a presença física. O desenlace é feito pelo whatsApp e não precisa de textão: basta apenas uma frase e um emoji. E melhor: não é preciso ouvir as lamúrias e o cobrança do outro. Nesse modelo não há espaço para drama, as pessoas, tais como os produtos, são para consumo. Não deixa de ser revelador — e chocante — que no Tinder haja a opção Keep Swiping (“continue passando”), algo muito semelhante a uma compra online, quando depois da escolha de um produto, o algoritmo pergunta se você quer continuar comprando.

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E vai evoluir. Bauman não está mais aqui para acompanhar — infelizmente ele morreu em 2017.  Mas já vislumbro rompimentos que envolvem mais do que duas pessoas no Zoom ou Teams com direito a tirar, o som de quem, começa um argumento cansativo.

Meu ex-amor no museu

Foto: Panorama de Viagem

Na história dos rompimentos à moda antiga, a Europa tem uma contribuição valiosa. Em 2006, um casal de Zagreb, na Croácia teve uma ideia insólita. Após o rompimento, o casal decidiu transformar os objetos que fizeram parte da relação de quatro anos em obras de arte. E claro, obras de arte precisam de museu. Assim, surgiu o Museum of Broken Relationships (em tradução livre, algo como Museu dos rompimentos amorosos, ou Museu dos Amores fracassados).  O acervo cresceu e hoje contempla centenas de objetos renegados por ex-casais, como escritos, roupas, souvenirs e mesmo “instrumentos” que participaram do desenlace.

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Em muitos guias esse museu está na lista de “curiosidades” e em 2011, ganhou o prêmio como o “mais inovador” museu da Europa. Porém, acredito que no futuro esse museu perderá o status de “curiosidade” e seus idealizadores serão visto como visionários. Afinal, se a sociedade líquida de Bauman permanecer, objetos de amores fracassados e seus rompimentos sentidos serão apenas registros do passado, peças de museu..

Obra de arte

Se você ainda faz ou fez parte desse mundo antigo e possui provas concretas de uma grande história de amor que terminou e você não suporta olhar para elas, mas tem pena de destruí-las… é a sua chance de fazer parte da história. Envie para lá. O museu aceita doações. À parte os futurismos, o Museu dos Relacionamentos Rompidos vale a pena. Não é mera curiosidade, é um convite a reflexão sobre a fragilidade das relações humanas. E voltando a Bauman, ele não é fatalista e acredita que o estado líquido do amor ainda pode ser solidificado. E para o nosso próprio bem. Porque, diz Bauman, quando nos distanciamos do outro, nos distanciamos de nós mesmos. Incompletos e angustiados o que poderá nos salvar? “Só a relação profunda com o outro”.

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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