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“Não és bem vegetariano”, um conto de Didier Ferreira
Yoav Aziz | Unsplash
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Neste artigo:

Enfim chegamos. Saio do carro,

— boa tarde,

digo, sem dar tempo ao motorista de retribuir a despedida. Estou atrasado para a festa de aniversário dela, que me aguarda, antevejo, ansiosa para me abraçar, tanto quanto eu a desejo imensamente estreitar contra o meu peito, e sentir, senti-la minha num longo instante antes de regressar ao interior da casa e ali recentrar todas as atenções em si.

Estou atrasado. Quarenta e cinco minutos, aproximadamente. Não tanto por culpa minha mas porque o comboio falhou o seu horário. “Um problema na linha”, alertou o maquinista, para meu desagrado, “aguardaremos alguns minutos nesta estação”. Já o comboio tinha partido da estação inicial com quase dez minutos de atraso. Passaram-se cinco, dez, quinze, vinte minutos. Nenhuma informação.

Vários passageiros abandonaram o comboio, cansados. Foram apanhar o metropolitano ou algum autocarro. Eu não. Deixei-me estar, como se não houvesse alternativa. Que não havia para mim, de facto. Porque a minha bicicleta não pode ser transportada nos autocarros e, sem elevadores na estação de metro mais próxima… Resta-me esperar aqui, sentado, inquieto. Escrevo-lhe uma mensagem para avisar. Chegarei atrasado.

Chego finalmente

Entro na sala. Cumprimento os presentes com abraços e beijos e apertos de mãos. Sento-me à mesa, no lugar que me foi reservado. Ao lado dela, naturalmente. Diz-me que tomaram a liberdade de iniciar o jantar sem mim. Tinham comido as entradas, saboreavam o pato com as batatas assadas. Para mim, ravióli recheado com queijo e espinafres, salada para acompanhar. Quando a travessa pousa na mesa, todos estranham a comida diferente, a anfitriã apressa-se a explicar,

— é aqui para o Didier, que não come carne,

quase ao mesmo tempo que outro convidado pergunta se sou vegan e de imediato é corrigido por outro, vegetariano,

— não vês que está a comer queijo,

enquanto sorrio, atento ao modo como o novo tema de conversa se instala e se dissemina rapidamente por todos os convivas alegres em torno da mesa.

— Sim, sou vegetariano,

respondo, enfim. Agora sei que tão cedo não se falará de outra coisa senão da minha opção. Vale-me, ao menos, o conforto de a ter ao pé de mim.

Sim, sou vegetariano

Gera-se um debate igual a tantos outros que travo em tantos lugares diferentes, em várias casas e restaurantes, sempre na Páscoa, no Natal e em outras festividades, com amigos e com os amigos dos amigos, para isso, basta surgir o mote: “o Didier é vegetariano”.

Perguntam-me, uns com curiosidade genuína, outros com laivos de censura na voz, todos certos da minha deficiência nutricional, se ficarei com fome, se me bastará um prato de comida sem carne ou sem peixe, se bebo leite, se como marisco, se a soja é vegetal, se tomo suplementos, se consultei um médico. Depois, as certezas: há vegetarianos que comem carne de vez em quando, o queijo vem da vaca, a vaca é um animal, precisamos de carne, experimenta este pedaço, um dia isso há de te passar.

Felizmente tenho-a ao meu lado, com a mão pequenina, macia, pousada sobre a minha perna esquerda e o rosto ligeiramente rosado virado para mim. Ela sabe como eu desprezo justificar-me. Falar contra opiniões infundadas. Debater coisas que as pessoas acham. Apenas porque acham. Mas, que outro remédio tenho se não mostrar simpatia? Sussurro ao ouvido da minha amiga as palavras de Cristo,

— eles não sabem o que dizem.

O que comes ao pequeno-almoço?

Chegam as sobremesas. Novas piadas e novas sugestões despertam gargalhadas. Aquela questiona-me se os vegetarianos comem bolo de banana e logo de seguida constata que sim,

— claro, a banana é uma fruta,

posso comer à vontade. Este faz questão de posicionar tudo o que é fruta diante de mim,

— isso é para ti, que és vegetariano,

reservando os doces para os demais,

— os que não se importam de comer os filhinhos das galinhas.

Então a dona da casa, uma mulher que muito me lembra a minha mãe, pela capacidade de filiar pessoas em sua casa e em seu redor, pergunta-me, com simpatia,

— o que comes ao pequeno-almoço?

Respondo, pensando no dia de hoje. Comi figos de manhã, antes do treino. Depois, arroz com feijão, abóbora e berinjela, uvas. Na confusão estalada pela minha revelação, por que tanta comida logo de manhã, como consegues comer tanto antes do almoço, não sabia que é assim que os vegetarianos comem, o marido da anfitriã pede a palavra, batendo levemente no copo de vinho com a colher de sobremesa. Diz, com ar solene,

— afinal o Didier come carne, porque

a figueira, explica, é polinizada por uma abelha que entra no fruto e nunca mais sai dele, logo, em abono da verdade, o bom homem garante que eu como a carne da abelha. Sem saber o que dizer, volto-me para a minha amiga, ela tem os olhos postos nos meus, a mão pousada sobre o dorso da minha, pergunto-me por que não, e sem respostas para dar, beijo-a na boca. Até que enfim há silêncio na sala.

Continue com Didier: “O pai não pode faltar mais ao trabalho”


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

antevejo: prevejo

recentrar: passar a focar-se em algo.

comboio: no Brasil, falamos trem.

metropolitano: metrô

autocarro: ônibus.

facto: grafia local para fato.

convivas: pessoas que participam, que acompanham alguém.

ao pé de mim: perto de mim.

laivos: indícios.

filiar: adotar como filho.

pequeno-almoço: expressão popular utilizada para a primeira refeição do dia.

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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