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“O pai não pode faltar mais ao trabalho”, um conto de Didier Ferreira
Zehua Chen | Unsplash
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Estou sentado na esplanada. Está um belo dia de sol e eu não dispenso uma ou duas horas inerte sob ele. Sinto-o na pele. Aquece-me. A cara e o corpo todo sentem-no com um prazer enorme. São onze horas da manhã. Estamos ainda no inverno e hoje o sol brilha bem alto no céu aberto.

Tenho agora um intervalo de quase duas horas entre aulas. Saí da escola, um pouco exausto. Vim para a esplanada do café, para aproveitar o calor, para relaxar, para pensar em nada. Não tenho fome nem sede. Tenho, isso sim, uma vontade enorme de esquecer a frase que me persegue desde anteontem.

Permito-me estar em transe

Ponho uma música baixinha a tocar nos auriculares. Sem voz, só a melodia soando nos meus ouvidos e ressoando por todo o meu ser. Aprendi a apreciar música clássica em dias em que, no passado, o meu cérebro se inquietava, não parava, com tudo reverberava em tons metálicos de espadas. Começou com a descoberta, casual, da melodia de Beethoven. Desde então, não tenho outro modo mais eficaz de me apaziguar, outro modo de desligar.

Hoje oiço Górecki. Tão suave aos meus ouvidos. Dramático nas minhas veias. Intenso no meu âmago. Tenho a mesma música a repetir vezes sem conta. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Começo a esquecer. Sete. Nove. Onze. Não sei quantas vezes mais toca. Às tantas perceciono uma linha contínua aos meus ouvidos gritando alto

— o que foi?

— o quê que ela tem?

— ó stôr!

Tanta repetição deixa-me como que num estado de transe. Retira-me a consciência dos espaços em volta. Das pessoas. De mim mesmo. Levito, quieto. Esqueço. Escuto o silêncio característico da vida. Um ou outro rugido de um autocarro. Um latido. O metal de uma cadeira arrastado. A voz da empregada

— bom dia.

Assim perco-me num enorme vazio. Divago para a sala de aula onde tudo aconteceu. E o café arrefece dentro da chávena de porcelana e a água aquece no interior do copo de vidro. Aos poucos, a imagem da Maria chega até mim. Torna-se viva. Comunicante. Diz, uma vez mais,

— o pai não pode faltar mais ao trabalho.

Do quente ao frio

A Maria adoeceu misteriosamente. Os meus colegas já tinham comentado comigo, duas semanas antes do sucedido, que a Maria desmaiara em casa e nada dissera ao pai sobre o seu estado de saúde. Souberam-no na semana seguinte, quando a ela perdeu subitamente os sentidos na sala de aula, tombando da cadeira num estrondo horrível de se ver, e, em lágrimas, outra aluna confessou baixinho à professora que a amiga tivera pelo menos dois episódios semelhantes, em casa. Outros desmaios seguiram o primeiro em sala de aula. De todas as vezes, a Maria foi levada para o hospital e o pai, informado da situação, pediu ao patrão para se ausentar por causa da filha. Uma, duas, três vezes no espaço de uma semana. Então, o patrão comentou:

— assim ainda perdes o trabalho por dares demasiada prioridade à família, Abreu.

O meu café esfriou completamente. Bebê-lo-ei à mesma. Sem o sabor que o caracteriza. Sem o odor forte de terra. Bebê-lo-ei à mesma enquanto acompanho o diálogo da empregada com o seu cliente conhecido. O homem preto agora sentado ao meu lado na cavaqueira com a empregada chegou montado numa moto espetacular. Reconheci-a imediatamente: uma BMW R nite T, igualzinha à que há algum tempo venho admirando e ambicionando comprar para mim. Essa imagem teve o condão de me trazer à realidade, deixando baça a imagem da Maria de braços cruzados sobre a mesa e a cabeça enterrada entre eles, primeiro com a face posta de lado, depois com o rosto totalmente escondido. Vi o indivíduo posicionar o suporte lateral da moto sobre a pedra da calçada portuguesa e deixá-la ficar no descanso com a mesma nitidez que visualizava ainda a Maria adormecida sobre a carteira, um minuto, dois minutos, três e quatro minutos sem qualquer movimento do corpo, até que um colega, sentado do outro lado da sala, muito divertido e provocador, diz,

— stôr, a Maria está a dormir,

tal e qual a empregada ao dono da moto,

— está mais magro,

e todos riem muito, alegres que estão a esta hora, menos eu e a Maria, eu incomodado com a galhofa, ela totalmente ausente, sem uma palavra,

— acorda, Maria,

nenhuma reação de si,

— Maria, acorda! Maria!

Deitámo-la no chão. A coordenadora chegou já a Maria tinha recuperado os sentidos. Num ápice,  alguém chegou com um cobertor que ficou por baixo do corpo pequenino, franzino, da Maria. Ela insistia,

— quero sentar,

tanto quanto a coordenadora com ela,

— não podes, querida, tens de ficar deitada.

E, quando a minha colega disse “já liguei ao teu pai”, a Maria respondeu, precipitada,

— o pai não pode faltar mais ao trabalho,

e chorou. Foram as últimas palavras que ouvi da Maria, misturadas com as notas de Górecki e a gargalhada do homem ao meu lado que acabara de confessar à empregada

— hoje tirei o dia para passear.

Continue com Didier: A história do primeiro livro que comprei


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

auriculares: fones de ouvido

oiço: grafia local para ‘ouço’

perceciono: ‘percepciono’ no Brasil, que é perceber através dos sentidos

autocarro: ônibus

chávena: xícara

empregada: no Brasil, é mais comum dizermos ‘atendentes’ (em estabelecimentos comerciais)

cavaqueira: banco de madeira

condão: capacidade, faculdade, poder

baça: enevoada, sombria

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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