Um dia comum no meio da pandemia
Era um dia comum no meio da pandemia, nós duas presas em casa, minha filha brincando, eu trabalhando. Eu sentada no computador, concentrada, quando ouço sua voz me tirar do torpor: – Mãe, sabe o meu amigo Guilherme? Da escola. Então, um dia a gente estava brincando de quadriciclo no parque e eu vi um […]
Era um dia comum no meio da pandemia, nós duas presas em casa, minha filha brincando, eu trabalhando.
Eu sentada no computador, concentrada, quando ouço sua voz me tirar do torpor:
– Mãe, sabe o meu amigo Guilherme? Da escola. Então, um dia a gente estava brincando de quadriciclo no parque e eu vi um bichinho no chão, chamei ele pra ver e ele me disse pra continuar andando e passar em cima do bichinho com o quadriciclo. E sabe mãe, eu passei. Agora fiquei pensando que eu devia ter ouvido a minha voz interior, porque eu não queria ter passado.
Assim, do nada. Meses depois do ocorrido.
Você pode estar pensando que este será um texto com uma bonita lição de moral. Mas não é sobre isso. É sobre o quanto as crianças, quando não são tolhidas, permanecem conectadas consigo, ou sabem voltar a ter conexão consigo. E olha que eu já tolhi muito minha filha, não sou nem um pouco santa. Ainda o faço ocasionalmente.
Nós, adultos, fomos aos poucos perdendo essa capacidade inata e maravilhosa da conexão conosco. Alguns a chamam de intuição, outros de autoconsciência, o nome na verdade pouco importa. Buscamos fora as respostas, porque não confiamos mais nessa voz interior. Nem a escutamos mais.
Todo dia, na minha página, recebo perguntas que eu não deveria estar recebendo, de pessoas que não conheço. E fico perplexa, não por preguiça de responder, mas porque são questões realmente pessoais, que eu não poderia sequer considerar responder. Questões sobre ter ou não mais um filho, sobre desmamar o bebê ou não, sobre a escolha da escola, sobre a mudança de cidade. Questões importantíssimas, totalmente terceirizadas, por medo.
Medo que vem da nossa confusão interna, de estarmos tão distantes de nós mesmas. A bússola interior, quebrada. Queremos agradar, queremos que alguém nos diga o que fazer, que nos indique o caminho a seguir, porque foi exatamente assim que passamos a infância. Agradando e obedecendo. Minha filha agradou o amigo e depois se arrependeu, porque se ouviu. Que
bom.As crianças nos mostram não só como estar conectadas conosco porque nascem muito conectadas com suas necessidades, emoções e vontades, mas também nos mostram como voltar a se conectar conosco quando não conseguimos mais. É sobre ter coragem de mostrar o que realmente deseja e sobre ter alguém pra nos acolher quando decidirmos não agradar, não obedecer.
Eu fui essa pessoa pra ela quando ela decidiu me contar do bicho, porque em algum momento da infância dela, parei de esperar obediência cega e comecei a querer respeitá-la como um sujeito que é. É algo difícil de se desconstruir dentro de nós, porque estamos inseridos numa sociedade que nos diz a todo momento que envergonhar, punir, mandar e castigar crianças vai mantê-las no “caminho do bem”. Mas eu pergunto: tem bem maior do que ouvir e seguir a própria voz interna? Aquela que só se sente livre para se manifestar no oposto da vergonha, da punição e do castigo?
Agradeço à minha pequena por me ensinar a voltar pra dentro pra procurar as respostas, ou para fazer mais perguntas enquanto a resposta não vem. Aprendi que mesmo muitos meses depois, essa voz está lá esperando pra ser ouvida.
Thais Basile é mãe da Lorena, palestrante e consultora em inteligência emocional e educação parental, eterna estudante. Apaixonada por relações humanas e por tudo que a infância tem a ensinar. Compartilha um saber para uma educação mais respeitosa no @educacaoparaapaz. Escreve nesta coluna mensalmente.
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