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Lições que aprendi colhendo uvas
José Crespo José Crespo
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Quando uma vindima — colheita da uva — deixa de ser um trabalho,  vira parte de uma viagem e de uma experiência transformadora.

A missão era simples. Encontrar o cacho de uva no pé e envolvê-lo na mão esquerda com delicadeza, como se fosse apenas apreciá-lo. Senti-lo em toda a extensão da palma e então abraçá-lo também com os dedos, cuidando para não esmagá-lo. Só então, depois que ele estivesse seguro, trazer o alicate com minha mão direita e desprendê-lo da videira num só…Clique! Tudo no tempo de um suspiro, sem distrações para não derrubá-lo.

Em seguida, como fazem nos duelos de filme de caubói, girar minha arma no ar — ops, meu alicate! — fechar a pinça e usar sua ponta para atacar o maço polpudo de fruta ainda aninhado na mão esquerda. Equalizando firmeza e delicadeza, dava tudo certo: as uvas ruins se desprendiam naturalmente. Ficavam as boas. E esse belo cacho perfeito eu deveria lançar a uma caixa colocada no chão.

E aí, tudo recomeçava. Próximo cacho, próxima videira.

Durante a colheita de uvas no sopé dos Alpes, eu só podia seguir em frente rumo a outra videira, se tivesse terminado meu trabalho na primeira. Nada podia ficar para trás. E quando eu não tivesse mais forças para arrastar pela terra a caixa transbordando de fruta, era hora de gritar “Caisse!”- que é um tipo de caixa em francês. Então, um rapaz robusto, suado e bronzeado surgia atravessando o vinhedo na minha direção com um grande cesto de vime nas costas. Assim, ele se abaixava e, num impulso vigoroso, erguia a pesada “caisse”. Por cima dos ombros, despejava as uvas dentro do cesto.

Por sua vez, ao notar o cesto cheio, ele as despejava em caminhonetes que partiam para algum lugar onde o carregamento seria transformado em vinho. Quando o sol começava a se pôr, sem claridade para continuar a colheita, dava-se o dia como terminado. No dia seguinte, tudo outra vez. Colher, selecionar, seguir. Colher, selecionar, seguir…

Colhendo uvas

Foram dias felizes. Talvez os mais felizes.

Entre a lista de dias mais felizes da minha vida, o tempo da colheita continua no topo. Eu, que vivia buscando a felicidade em situações e posses, fazendo exigências e propondo condições; de repente, a encontrei na rotina descomplicada de um trabalho anônimo e repetitivo pelos corredores de um vinhedo longe, muito longe de casa. Por que será? Sigo me fazendo essa pergunta.

Colher uvas foi um meio que encontrei para sustentar a continuação de uma longa viagem. A corrida para fazer parte da vindima — colheita da uva — na Europa era assunto que sempre surgia nas conversas entre viajantes. Pagava-se bem, bebia-se melhor ainda nas horas de folga, mas era preciso ter contatos para conseguir uma vaga. Falava-se de França, Itália, Alemanha…Ninguém falava da Suíça. Mas eu sabia que lá tinha vinho.

Meu lugar num vinhedo

A cidadezinha de Aigle fica aos pés dos Alpes, num cantão suíço onde se fala francês. Por ali, as montanhas se levantam subitamente, mas pequenos povoados e vinhedos deram seu jeitinho de se agarrar pelas encostas. Quando chega o mês certo, as videiras ao redor do castelo medieval da cidade ficam tão carregadas que é impossível ignorá-las. No burburinho da feira da cidade acabei ouvindo de rabicho que uma família de viticultores da região ainda buscava colhedores para enviar às suas terras. Em poucas horas de coragem e determinação, descobri onde vivia a família, me apresentei e garanti meu lugar no vinhedo.

colhendo uvas

foto: Régis Colombo

Lições que aprendi colhendo uva

 1) Não ter vergonha de pedir ajuda — Meu primeiro dia foi de suor e constrangimento. Precisava pegar o ritmo dos outros colhedores, experientes. A colheita de uvas é uma corrida contra o tempo e qualquer atraso pode mudar as características da fruta e frustrar os objetivos dos vinhateiros. Eu não queria ser a responsável por desmoralizar toda uma safra. Escolhi escancarar minha vulnerabilidade. Quando eu me atrasava, rapidamente um colhedor já livre vinha na direção oposta depenando as videiras até nosso encontro no meio do caminho. Foi assim que comecei a conhecer meus colegas.

A primeira ajuda veio de uma ágil senhora italiana de rosto muito marcado, evidentemente pelo tempo e pelo sol. Seguia como trabalhadora volante o calendário das colheitas pela Europa junto com 3 amigas. Foram elas que seguraram minhas mãos e me ensinaram a colher, com paciência e ritmo. Quando eu ainda era um risco ao resultado da safra, elas corriam às gargalhadas em meu socorro. Logo me habituei e seguimos na mesma toada.

2) Existe mesmo algo de especial nas pequenas coisas — Numa rotina de movimentos repetitivos que começavam ao nascer e terminavam ao pôr-do-sol, comecei a me apaixonar por coisas aparentemente banais. A conversa fiada com os colhedores no ponto onde a caminhonete nos buscava, o trajeto até o vinhedo enquanto o mundo ainda dormia, a água servida no campo em canecas de alumínio…  Por volta das 9h30, alguém gritava “café!”. Largávamos os alicates. Nenhum cappuccino jamais superou em sabor aquele copo de café com leite quente que eu tomava desajeitada sem tempo de tirar as luvas grosseiras de jardinagem, escorada numa carroça ou sentada na terra.

A marmita do almoço era boa, mas o sono reparador depois dele, insuperável. No meio da tarde, quando o cansaço ia ganhando a batalha, vinha o canto restaurando as forças. Começava com uma voz, duas, depois várias… Às vezes num idioma desconhecido. Colhedores vinham do mundo inteiro, mas naquela época, especialmente dos países da ex-Iugoslávia. Eram refugiados de guerra.

3) Pequenas vitórias são estimulantes — Recentemente, entrei em pânico com o tamanho de um trabalho. E me remeti à colheita. Em vez de olhar para o horizonte do vinhedo, olhava cada videira de uma vez como um degrau de uma longa escada que eu precisava subir. Cada videira deixada vazia para trás era comemorada, o que me trazia senso de autoconfiança e vigor para continuar.  Sem jogar em cima de mim o peso de todo um horizonte de vinhedos, fui capaz de encontrar prazer em cada etapa do trabalho, finalizando a cada dia uma pequena missão. Até, finalmente, perceber que havia chegado ao fim da colheita.

4) Quando abro mão de que tudo aconteça de acordo com meus desejos, abro caminho para oportunidades — Quando soube da vaga de colhedor na feira, busquei batalhar por ela sem a expectativa que fosse bem recebida. A consequência foi uma busca tranquila, até divertida, sem estresse nem a obrigação de dar certo. Parece que acabei permitindo que as pessoas me tratassem com a mesma leveza e carisma que eu as estava tratando. Ao ser contratada, fui felicitada pela determinação. Eu era uma estrangeira desconhecida e sem referências.

5) Quando deixo a vida fluir, há grande chances de encontrar momentos de felicidade pelo caminho  — Já notou que quando alguém está fazendo aquilo que mais gosta — pode ser pintar, patinar, dançar, trabalhar num projeto querido — a motivação e a concentração se apresentam com tanta facilidade que esse alguém nem percebe o tempo passar? É que naquele momento, a pessoa não pensa nos problemas que não resolveu ou nos desafios que tem pela frente. Ela está focada no presente. Seu corpo, sua mente e seus sentimentos estão fluindo em harmonia. Estão seguindo o fluxo. Estão perto da felicidade. O conceito do fluxo foi desenvolvido pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi — reconhecido no mundo como uma das maiores autoridades em pesquisa no campo da Psicologia Positiva — para designar experiências como essa que eu acredito ter vivido colhendo uvas.

Mas colher uvas não é minha atividade preferida!

Imagino que ao me permitir me desligar dos problemas passados e futuros, me dei licença para desfrutar de sensações simples e óbvias, sem querer mudar nada. Acabei atingindo uma harmonia geral, um estado de pleno desfrute do que acontece aqui e agora. E senti a tal felicidade. Mesmo que temporariamente, eu me senti no meu melhor. Colher uva nunca foi só sobre colher uva.


JULIANA REIS é uma viajante em busca de histórias, pessoas, lugares e experiências que a modifiquem. @viagenstransformadoras

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