Leite: veneno ou elixir
Leite faz bem ou faz mal à saúde? O que os clássicos ayurvédicos nos ensinam sobre esse alimento tão consumido no mundo todo. Descubra como consumir lácteos de maneira saudável.
Leite faz bem ou faz mal à saúde? O que os clássicos ayurvédicos nos ensinam sobre esse alimento tão consumido no mundo todo. Descubra como consumir lácteos de maneira saudável.
Quando fui morar em Gujarat, na costa leste da Índia, para estudar medicina ayurvédica, eu pensei que não fosse encontrar muita gente doente por lá. Isso porque eu sabia que Gujarat é um dos estados com a maior população de vegetarianos da Índia e estatisticamente os vegetarianos tendem a ser mais saudáveis.
Contudo, uma característica muito marcante da alimentação na Índia é que eles consomem muitos lácteos (leite, iogurtes, manteiga, ghee…). Uma das consequências disso são as filas enormes de pacientes nos hospitais com excesso de muco, tosse e asma. Sem falar de problemas gastrointestinais e doenças que envolvem o crescimento desordenado de células e tecidos.
O impacto dos excessos
Se você parar para pensar, o leite de vaca é um fluido de crescimento de bezerro. Ou seja, é um alimento capaz de, por si só, elevar o peso de um filhote de pouco mais de 20kg para cerca de 200kg em apenas alguns meses. Diante disso, você pode imaginar o impacto que uma substância dessa pode ter no corpo humano quando consumida rotineiramente.
Existem muitas evidências relacionando o consumo de lácteos com diferentes tipos de câncer, por exemplo. O termo técnico para câncer é hiperplasia, que consiste basicamente numa proliferação descontrolada de células e aumento de tecidos.
Mas calma, isso não quer dizer que o leite produzido pela vaca seja um grande vilão para a saúde. A vida e a saúde são fenômenos complexos, então a verdade sobre os lácteos não pode ser simplificada. Os textos milenares do Ayurveda sugerem que o leite possui ótimas propriedades e pode até ser considerado um elixir, capaz de dar força e vitalidade para o corpo humano. O problema é saber se o leite que você consome possui todos os requisitos de um leite verdadeiramente saudável.
Mas quais são esses requisitos? Será que o leite que a gente encontra nos supermercados, vendidos em caixinhas e etc., são a mesma substância que os clássicos ayurvédicos consideram como elixir?
Leite de verdade é leite fresco
Essas perguntas me levaram a estudar e a pesquisar sobre o assunto por mais de um ano. Durante esse período me debrucei sobre diversos Samhitas e Nighantus (livros clássicos milenares do Ayurveda) e o que descobri acabou sendo decisivo para minhas escolhas alimentares a partir de então.
Do ponto de vista ayurvédico, o leite que faz bem à saúde é aquele que acabou de ser tirado da vaca e deveria ser consumido ainda morno. Essa é a hora em que os amantes de leite retrucam: “ah, Matheus, então é impossível tomar leite da maneira correta, só se eu tiver uma vaca no meu quintal”.
Pois bem, depois que o leite esfria, ele não estraga automaticamente. Basta fervê-lo que ainda seria possível se beneficiar de todos os benefícios referidos nos Samhitas. Mas tem um detalhe: essa fervura não pode demorar para acontecer. Ela deve ser feita em até duas horas e meia depois que o leite foi tirado da vaca. Passado esse prazo, não adianta mais ferver e o leite deve ser descartado, pois já não é mais apropriado para o consumo.
Veneno para o corpo
E quanto ao “leite longa vida”, Matheus, criado pela indústria? — você pode perguntar. Será que basta ferver o leite na hora certa para que ele se mantenha bom por muitos meses?
As recomendações ayurvédicas são bastante claras e específicas quanto a isso. O leite deve ser consumido em até quatro horas aproximadamente, a partir do momento que foi tirado da vaca. Depois desse período ele deve ser rejeitado, independentemente de ter sido fervido ou não. Você leu certo: quatro horas é o tempo médio de vida do leite de verdade.
Segundo os médicos autores dos livros clássicos, o leite não fresco ou que foi fervido várias vezes é semelhante a um veneno para o corpo. Ou seja, não é nem que ele perca suas qualidades e se torne neutro para a saúde. Nesse caso, de fato, o leite pode fazer muito mal.
Em busca do leite perfeito
Sem essas informações a respeito do leite, muitos alunos e pacientes acham que eu tenho birra com os lácteos porque sou vegano. Na verdade é ao contrário. Eu já não comia carne, mas me tornei realmente vegano justamente pela dificuldade em conseguir um leite que me fizesse bem ao invés de me deixar doente.
Quando eu cheguei na Índia eu tomava leite e consumia lácteos. Foi estudando o assunto e observando inúmeros pacientes, que percebi que não seria possível me manter saudável consumindo lácteos da forma como eles são produzidos hoje em dia.
Mas antes de desmamar, eu me desafiei a encontrar o leite perfeito. Depois de um tempo procurando, consegui achar um produtor local que se dispôs a levar o leite recém-tirado até a minha casa. Eu fervia esse leite ainda fresco e tomava toda manhã. Tudo ia bem, até que um dia algo que eu não previa aconteceu.
A qualidade do leite importa
Estava fervendo o leite que acabara de receber como de costume, quando de repente, o leite talhou e a casa toda começou a cheirar muito mal. Contei para o produtor o que havia acontecido e ele me confessou que a vaca havia gripado com a friagem da noite anterior. Segundo ele, quando a vaca gripa, o leite talha.
Até aquele momento, nunca tinha refletido sobre isso, mas depois percebi que não há nada mais condizente com os ensinamentos ayurvédicos do que essa constatação: se o leite deriva da vaca, a qualidade do leite vai depender da saúde dessa vaca. Isso é tão óbvio que eu questionei minha inteligência por nunca ter pensado nisso. A verdade é que eu nunca tinha nem considerado que a vaca pode ficar gripada…
Se a vaca sofre, o leite é impróprio
De acordo com o Ayurveda, se um animal está doente, nada que venha dele será saudável e, portanto, não deveria ser consumido por pessoas que desejam ter uma vida longa e feliz. E os textos vão além. Eles dizem que o leite de uma vaca cujo bezerro está doente, ou morreu, também não faz bem para a saúde.
Nas minhas pesquisas também descobri que só deveríamos tirar o leite da vaca para nosso consumo após sete dias do nascimento do bezerro. Ou seja, o leite produzido pela vaca na primeira semana deve ser exclusivamente do bezerro. Nesses primeiros dias, da mesma forma que acontece com a produção de leite humano por uma mulher que acabou de ter bebê, a qualidade desse leite, mais apropriadamente chamado de colostro, é completamente diferente.
O problema aqui é que sabemos que a prática da indústria leiteira atual é bastante diferente disso tudo. Além dos animais confinados ficarem frequentemente doentes, normalmente o bezerro é separado de sua mãe já no segundo dia de vida, quando então se inicia a ordenha para o consumo humano. Sem contar os bezerros machos, que comumente são abatidos por serem obviamente incapazes de produzir leite quando adultos. Talvez você nunca tenha visto a cena de uma vaca sendo separada do seu bebê recém-nascido, mas elas sofrem como qualquer mãe sofreria. E quando a vaca sofre, o leite não é apropriado para consumo humano na perspectiva ayurvédica.
Vaca come o que?
Outro ponto que me chamou a atenção é quanto à alimentação dos animais. Também nesse aspecto, mais uma vez a pecuária, tanto a leiteira quanto a de corte, está claramente desalinhada com as recomendações ayurvédicas.
Para se manter saudável, todo animal precisa ter acesso aos alimentos que fazem parte de sua dieta natural. No caso de uma vaca, estamos falando de gramíneas. Os bovinos são animais ruminantes e, como tal, comem grama. Contudo, sabemos que a maioria desses animais são criados com ração. O problema é que eles não digerem muito bem grãos, como soja e milho, que são a base da ração. Isso, por sua vez, acaba gerando uma hiperproliferação de bactérias no seu trato digestivo.
Para contornar essa situação, os produtores utilizam grandes quantidades de antibióticos. Aliás, não sei se você sabia, mas 80% de todos os antibióticos produzidos no mundo tem como destino a produção de animais para consumo humano. Você que tenta ao máximo evitar tomar remédios precisa considerar que talvez esteja se expondo a esses fármacos sem saber. É claro que isso também tem impactos importantes para a saúde global, como a seleção de superbactérias, cada vez mais resistentes.
Leite de verdade é difícil de digerir
Mas voltando para efeitos do leite na nossa saúde, vale mencionar mais algumas dicas práticas que também aprendi com o Ayurveda. Vejamos outra situação em que o leite faz mal.
O leite e seus derivados nunca deveriam ser consumidos com frutas, sal, cereais ou certos rizomas. Isso porque, de acordo com as diretrizes clínicas do Ayurveda, essas combinações prejudicam a digestão e podem gerar complicações para a saúde. Aliás, o leite por si só, já é um alimento difícil de digerir.
Os lácteos fazem parte da dieta habitual de quase todos os pacientes que eu atendo. Não é por acaso que eu estimo que cerca de 80% deles tenham problemas de digestão. Apenas pessoas com uma digestão muito boa conseguem digerir leite de verdade sem dificuldades. Isso não ocorre apenas por causa da lactose ou da caseína, mas pelo processo difícil de digestão desse produto.
Conclusão
Se você é um amante do leite e derivados, imagino que este artigo não tenha te deixado muito feliz. A minha ideia não é te convencer de que leite de vaca faz bem ou faz mal, nem condenar qualquer tipo de alimento. Meu objetivo aqui é te informar e te conscientizar.
Você é responsável pelas suas escolhas e pelas consequências dessas escolhas. A gente diz que o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória, né? Então antes de consumir um produto, é importante conhecer sua cadeia produtiva e os impactos que ele pode ter na sua saúde e na saúde da sua família. Com base nisso, você escolhe de forma mais responsável e consciente.
Entendo que meu papel como médico e professor é fornecer informações úteis e validadas pela comunidade médica ao longo dos milênios, para que você possa fazer as melhores escolhas para você e para a sua comunidade.
Um grande abraço e lembre-se sempre: SAÚDE É LIBERDADE!
MATHEUS MACÊDO é o primeiro brasileiro a se formar em medicina na Índia com especialidade em Ayurveda no curso BAMS (Bachelor in Ayurveda, Medicine and Surgery). Viveu na Índia quase 7 anos e de lá criou a Vida Veda, uma empresa social dedicada a divulgar o conhecimento ayurvédico em língua portuguesa. Carioca, vive em Guimarães, Portugal, e percorre o mundo dando palestras sobre Ayurveda e Medicina Integrativa.
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