Inteligência é ouvir o corpo
Ele está o tempo todo conversando com a gente. Nós é que cismamos em não apurar nossa audição sutil, mas é bom começarmos a darmos mais valor
Ele está o tempo todo conversando com a gente. Nós é que cismamos em não apurar nossa audição sutil
Era a primeira viagem que eu fazia sem muletas, depois de ter sido atropelado por uma moto. Tinha que dar uma palestra em Campo Grande. Fui de manhã para retornar no mesmo dia, mas deu tudo errado. Na volta, chovia em Guarulhos (SP) e, após duas tentativas fracassadas de pouso, seguimos para o Rio. O Galeão estava com dezenas de voos cancelados e não havia perspectiva de decolagem para São Paulo naquela noite. Fui para a Rodoviária na esperança de tomar um ônibus-leito que me levasse para casa. Bobinho, eu… Consegui um convencional com saída às 4 da manhã. Chegamos ao Tietê ao meio-dia, e não havia táxis. A alternativa foi o metrô lotado. Só entrei em casa na metade da tarde, e logo saí para Guarulhos, pois tinha uma palestra no dia seguinte em Manaus.
Quando voltei de vez para casa, percebi que meu corpo simplesmente não obedecia à minha mente. Eu olhava para o escritório e meus pés se viravam para o quarto. Mesmo assim, eu resistia a descansar, pois tinha trabalhos a fazer. Foi quando a Lu, com a sabedoria e compreensão próprias das esposas, me aconselhou: “Ouvir o corpo é um sinal de inteligência, querido”. Bingo! O corpo fala conosco o tempo todo e, muitas vezes, fazemos ouvidos moucos para ele, pois preferimos ouvir as demandas externas. As expectativas do mundo sobre nós são grandes, e costumam ser maiores que as demandas do próprio corpo. Falta de inteligência? Vejamos.
Inteligência humana
Em 1903, o psicólogo francês Alfred Binet publicou o artigo “L’Étude expérimentale de l’intelligence”, e deu início aos estudos sobre inteligência humana. Foi ele que criou o primeiro teste, chamado de QI, ou quociente intelectual. Mas, nos anos 1970, Howard Gardner, professor da escola de psicologia de Harvard, criou a visão de que nós não temos uma inteligência só, que possa ser avaliada por um teste assim tão objetivo. É dele a teoria das Inteligências Múltiplas. A inteligência lógica avaliada por Binet seria apenas uma de sete. As outras seriam as inteligências linguística, musical, espacial, corporal cinestésica, intrapessoal e interpessoal.
O conceito das Inteligências Múltiplas é utilizado em escolas, orientando programas de educação que buscam o desenvolvimento integral da criança, e também em empresas, onde o RH precisa colocar a pessoa certa no lugar certo. Só que, como Gardner previu, esse conceito é elástico. De tempos em tempos, uma nova inteligência é proposta, e você já deve ter ouvido falar em inteligência naturalista, espiritual, estética e outras. O acréscimo mais bem-sucedido foi o da Inteligência Emocional, proposta por Daniel Goleman.
Nessa linha, saber ouvir o corpo, e manter com ele uma relação harmônica, que promove a saúde, o bem-estar e a performance, não deixa de ser uma forma, ou um tipo, de inteligência. Pense um pouco. Quantas vezes seu corpo pediu algo e você ofereceu outra coisa? O cantor e compositor Lenine disse que “A vida não para, mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, e o corpo pede um pouco mais de alma”. Sim, a vida não para, mas o corpo tem suas métricas próprias, que podem ser limites, necessidades ou mesmo desejos. Às vezes, parar é sinal de sabedoria, mais do que de inteligência.
Seu corpo é sábio
Na medicina, “propriocepção” é a capacidade que temos para reconhecer a localização espacial do corpo sem usar a visão. Eu sei se estou sentado ou de pé, mesmo de olhos fechados. Para tanto, temos uma rede de fibras e terminais nervosos interagindo com os músculos e tendões. Dessa forma, o corpo conversa com ele mesmo, buscando o bem-estar. Nos tendões, por exemplo, o Órgão Tendinoso de Golgi avalia constantemente a tração que está sendo exercida, regulando a força que o corpo é capaz de executar ou suportar, a fim de evitar lesões. Sim, o corpo é sábio. Conhece seus limites e alcances. Se está calor, suamos, se está frio, arrepiamos, se corremos, o coração acelera. E tudo isso sem a participação da consciência. É fisiologia pura.
Na verdade, a consciência às vezes atrapalha, quando nos negamos a oferecer ao corpo aquilo que ele pede. Já ouviu falar de uma criança que come terra? Falta de ferro na alimentação, dizem os pediatras. Já notou que às vezes um cachorro come grama? Problemas digestivos, diagnosticam os veterinários. O corpo pede água, repouso, carinho, pede até outro corpo. Ele pede com sua linguagem sutil. E muitas vezes não ouvimos, ou fingimos não ouvir.
Raridade…
Uma forma ampliada da propriocepção seria a percepção integral do corpo, com suas sutilezas. Entendê-las, negociar com elas, criar uma relação harmônica e saudável com o corpo é sinal de inteligência. Quem ouve seu corpo cuida melhor dele. E quem cuida de si tende a cuidar melhor do resto. Dos outros, do trabalho, das coisas. Afinal, como também disse o Lenine, “Enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara…”.
Eugenio Mussak entre outras coisas, estudou medicina e se especializou em fisiologia. Por isso, às vezes, escreve sobre o corpo. @eugeniomussak
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