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Histórias de mim: lembranças passageiras em uma viagem de trem
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Neste artigo:

Prepare-se para uma jornada e descubra o que aconteceu quando parei de pensar só na minha busca e passei a ouvir quem cruzava meu caminho.

O trem descia num balanço macio em direção ao sul da Itália. A onda morna de sol entrando pela janela em pleno inverno me acolheu num embalo sonolento e gostoso por um longo tempo.

Veneto, Emilia-Romagna, Toscana, Umbria, Lazio, Campania, Puglia… Conforme cruzávamos os retalhos da bota italiana, um cenário diferente se formava no meu painel particular de vidro temperado. Eu poderia viajar assim, sem desembarcar, a vida toda.

Agora, passava na tela do meu lado esquerdo uma longa faixa azul. Era o Mar Adriático. Ainda faltava algum tempo para o destino final, o porto de Brindisi.

Então, descansei os olhos. E adormeci.

A verdade é que a viagem não vinha tomando o mesmo rumo das minhas expectativas. Quando fui embora de casa, imaginei desbravar o mundo na cara, na mochila e na coragem, fazendo a aventureira de cidade em cidade, colecionando histórias de gente que eu encontrasse pelo caminho… Acabei encontrando mais desafios do que acreditava ser capaz de enfrentar — entre eles, o efeito colateral da contínua despedida de pessoas e lugares aos quais eu me apegava.

Resiliência

Alegria e aperto no coração seguiam comigo, juntos, sempre. Então, decretei que faria quantas travessias fossem necessárias até encontrar alguma serenidade — talvez uma fórmula qualquer para superar tanto adeus e as adversidades — e também, se não fosse querer demais, histórias boas para contar.

O que eu precisava era de resiliência. Eu tinha saído de casa sem.

Alguém me cutucou.

— O homem do chapéu… — pensei, fazendo força para acordar e atender aquele cara que sempre chega pedindo o bilhete de viagem bem quando a gente cai no sono.

—Brindisi! — ele anunciou.

Naquela noite, um navio cruzou balançando um furioso mar de inverno entre Itália e Grécia. Levava, na ventania, apenas dois turistas a bordo: eu e Carlos, um jovem mexicano.

Amargurado e confuso, Carlos explorava o mundo após o México passar por uma grave crise econômica nos anos 90 que ficou conhecida como Efeito Tequila. Ele não acreditava mais em ser feliz, dizia que agora os mexicanos — tomados por medo e desconfiança — priorizavam o individualismo. Ficamos amigos e por vários dias seguimos por trilhos de destino em destino.

Certa manhã fui acordada na cabine de trem por uma aflitiva sequência de “zips” e “clics”. Carlos, inquieto, ajeitava a mochila. Na noite anterior, conhecera uma garota grega fascinada pelo México e, entre um gole e outro de ouzo (aquela bebida grega tradicional), a dupla fizera uma lista de prós e contras mexicanos. Enquanto amarrava os cadarços, meu amigo avisou que estava interrompendo a jornada. Desceria na próxima estação. Não queria mais estar longe de casa.

Carlos não me abraçou. Jogou a mochila nas costas e saiu pela porta. Eu já sabia que ele também não gostava do conhece-e-despede da vida de viajante. Sumimos da vista um do outro pelo vidro da janela. Desde que o conheci, foi só nesse dia que o notei caminhando como se não levasse peso no ombro — apesar da bagagem pesada.

Onde fica sua casa?

Segui meu rumo desacostumada com a ausência do amigo. No caminho, conheci Alia, jovem de olhos negros marcantes, particularmente determinada e um tanto misteriosa. Alia deveria terminar sua jornada na Holanda. Lá, ia estudar Relações Internacionais. Alia era da realeza, mais tarde fiquei sabendo. Prima do último rei do Afeganistão. Nascida no exterior após a família deixar o país na chegada dos soviéticos em 1979, estava numa longa viagem de busca por suas raízes.

Yanira eu conheci enquanto procurava um assento vago num trem subindo os Alpes. Chilena. Seus pais a levaram para o Brasil ainda bebê, infelizes com a ditadura Pinochet. Ela cresceu e virou brasileira. Então a situação política se transformou e os pais de Yanira a levaram de volta para o Chile. Meio sem pátria preferida, foi morar no mundo. Naquele inverno, Yanira trabalhou na montanha vestida numa roupa peluda de raposa, entretendo crianças enquanto esquiavam. E, dentro da fantasia, ela se escondeu de si mesma por um tempo.

Quando chegou a primavera, decidiu embarcar num trem rumo a Barcelona a fim de estudar Artes Dramáticas por lá. Do fundo do vagão, ela acenou não escondendo o medo. Mas foi embora mesmo assim. Sentida por ter que dar mais um adeus – e ainda desejando encontrar histórias para contar – embarquei num outro trem.

Amor de cinema

Desci no País Basco. A região entre França e Espanha é casa — dizem que há mais de 4 mil anos — de um povo que até hoje conserva fortes traços culturais originais, especialmente o idioma. Lá conheci Miguel, que não tinha nada de basco e queria ser cineasta. Só estava de passagem rumo a Madri, onde iria conhecer o famoso diretor de cinema Pedro Almodóvar pessoalmente (num desses golpes de sorte que a vida dá na gente).

Miguel vinha fugindo da dor de uma antiga ruptura. A mãe, chilena de sobrenome Allende, conhecera anos antes um estrangeiro numa viagem de navio. Por muito tempo trocaram cartas até que escolheram viver seu grande amor no México, rompendo com o lado chileno. Miguel nasceu desse amor. Cresceu magoado por não conhecer toda a família.

Tempos depois do nosso encontro, ele me escreveria contando que se desencontrou de Almodóvar, mas que estava no Chile conhecendo primos, tios, a avó… E dentro de um mês estaria de volta à Espanha, desta vez em definitivo, para trabalhar numa produção cinematográfica com “Pedro”. Seria o Almodóvar? Eu nunca soube.

11 de setembro

Acordei com o homem do chapéu – ele de novo — cutucando meu ombro, só que dessa vez pedindo o bilhete num sotaque galego forte. O embalo bom era agora um chacoalhar irritante e o sol forte vindo da janela ardia no rosto. Entreguei o bilhete e me apressei até a porta.

Desci na estação seguinte. Era dia 11 de setembro. Eu ainda esfregava os olhos pelo sono sustado quando percebi que minha mãe não estava ali. Mas deveria, era nosso combinado. Após mais de um ano longe uma da outra, seguiríamos juntas e a pé daquele ponto rumo a Santiago de Compostela.

Prossegui com o plano. Tomei a rua que subia pela lateral da estação até o refúgio para viajantes e me percebi emparelhada ao curso dos peregrinos compostelanos. Eles passavam apoiados em cajados, muitos com os pés enrolados em curativos. Aquele já era um trecho avançado do Caminho de Santiago, distante a pouquíssimos dias do destino final — reduto, portanto, dos buscadores com história, dos calejados, experientes e transformados.

Na manhã seguinte, minha mãe apareceu. Uma interrupção de voos nos céus internacionais fora o motivo do atraso.

As notícias ainda eram confusas. O mundo estava parando por alguns dias. Nós não. Ali, nossa busca começava. De cajado e mochila, me aprontei e segui com ela. Dessa vez a pé. Desperta. Ela, então, me perguntou sobre a colheita de histórias após tanto tempo longe de casa.

— Afinal, esse era o seu objetivo. — disse.

Como explicar que não tinha história e que a maior parte do meu tempo eu havia gasto numa luta pessoal contra a solidão, as despedidas e as saudades?

Alcancei a bolsa que Yanira esqueceu comigo e dela tirei o cantil que nunca devolvi ao Carlos. Dei um gole vigoroso na água gelada, tentando ganhar tempo. O frescor me lembrou a sangría com gelo e frutas que Miguel me apresentou quando nos fartamos de pintxos (petiscos bascos) num bar em San Sebastián.

— Mãe… Quer escutar a história de uma longa viagem de trem? Ela junta um dos diretores de cinema mais famosos do mundo, um ditador infame, o último rei do Afeganistão…

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JULIANA REIS é uma viajante e contadora de histórias de coração inquieto que escreve mensalmente na Vida Simples sobre a relação entre as viagens e o crescimento pessoal.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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