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Espirro
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Na coluna desta semana, o escritor português Didier Ferreira traz para o público de Vida Simples uma história sobre o impacto de um simples movimento fisiológico involuntário — o espirro.

Entro no Metropolitano. Está relativamente vazio. Passou a hora de ponta e eu sinto-me feliz nestes dias que entro na carruagem e tenho onde sentar. Duas vezes por semana apanho este transporte subterrâneo entre as oito e dez e às oito e vinte da manhã. Nesses dias, sofro como todos os outros passageiros, lotado que fica o compartimento, cheio de gente apertada grotescamente, o odor nauseabundo do hálito matinal de uns e do suor, não sei se noturno, se do dia anterior, de outros.

Nesses dias,

— próxima estação,

incomoda-me sobremaneira as pessoas que não se calam,

— Cabo Ruivo,

falando alto umas com as outras ou então ao telemóvel, expondo conversas privadas a quem quiser saber das suas vidas das dos outros com quem comunicam. Também me incomodam os que não se desculpam de cada vez que me empurram ou me calcam os pés, ainda que involuntariamente. Depois, há a irritação com a gestão do Metropolitano de Lisboa — as coisas poderiam ser diferentes, melhor organizadas. Tenho a sensação de que reclamo por tudo e por nada, que começo o dia da forma errada, enfim, também eu poderia chegar dez minutos mais cedo e assim evitar a hora mais chata, mas só raramente o faço.

Falemos de hoje

Mas se estou sentado,

— Próxima estação,

por que é que reclamo?

Olivais.

9:42. O visor do relógio da estação diz-me que chegarei mais do que a tempo. Volto então os olhos para a página do livro aberto sobre as minhas pernas e delicio-me com o texto de Raul Brandão. “Essas coisas dizem-se mas nunca se fazem. Se o senhor fosse um homem inteligente compreendia-o logo. Mas não é. (Gesto do outro.) Não é. Demais a mais essa mulher que o senhor lamenta não é a mulher ideal que lhe convém. É uma felicidade para o senhor ver-se livre dela. GOVERNADOR CIVIL: Ela é que se vê livre de mim. SNR. MILHÕES: É uma mulher que o engana. GOVERNADOR CIVIL: Oh! SNR. MILHÕES: Enganou-o sempre. GOVERNADOR CIVIL: Senhor! SNR. MILHÕES: É o que lhe digo. O senhor tem cara

— Próxima estação,

de ser enganado por todas as mulheres.

— Chelas,

É uma coisa que se vê. GOVERNADOR CIVIL: Basta!” Poucas pessoas saem da carruagem. Muitas entram, apressadas. Entre elas, uma senhora forte, de meia idade, invade brutalmente a carruagem numa ânsia voraz de encontrar primeiro onde sentar. Ocupa o lugar mais próximo da saída. Vejo como os olhos, os movimentos dos lábios e os gestos dos outros relevam desagrado com a atitude dela. Mas a mulher está comodamente sentada, indiferente aos que a rodeiam. Bem, não me expresso corretamente dizendo que ela está confortável, pois a criatura chama a atenção pela forma ruidosa como tosse, tosse para mão, tosse e espirra amparando os germes ora com a direita ora com a esquerda e, discretamente, limpa-as na roupa.

Onde está a etiqueta respiratória?

A mulher parece-me tão distraída com o telemóvel como em agonia quando tosse. Estremece-lhe todo o corpo num gesto de arrepio. Há uma pequena porção de expectoração verde nos seus dedos (nem sei por que a observo), que ela disfarça com a mão semifechada, enquanto procura com a outra qualquer coisa na bolsa que imagino serem lenços de papel. Por ora não me atrai O Doido e a Morte. Penso, com uma crescente indignação e revolta dentro de mim, na imprudência do espetáculo que assisto. Quero dizer

— Próxima estação,

“não tussas para a mão”

— Bela Vista,

mas hesito. Receio soar a soberba da minha parte instruir uma mulher com idade para ser minha mãe, para mais estando adoentada. Calo-me, portanto, e deixo-me estar a espiar todos os lugares que deverei evitar, lugares onde os seus germes se poderão instalar. Porque antevejo a sua atuação quando chegar a hora de se levantar. Imagino-a equilibrando-se em pé. Com as mãos seguras e correndo nos ferros sobre os assentos. A mão no varão diante da porta. Provavelmente a mancha gordurosa da palma deixada para trás na parede da carruagem ou no vidro da porta. Sei o que deverei fazer. Não tocar onde ela puser as mãos.

— Próxima estação, Olaias.

Tamanha inconsequência da minha parte

O ecrã do telemóvel marca 22:53. Espirro. Dói-me a garganta. Dói-me a cabeça. Doí-me ligeiramente o corpo. Estou nas Urgências. Aguardo há horas a minha vez. No pulso, tenho a pulseira amarela de papel indicia que muitas mais horas ainda ficarei por cá. Estou cansado. Exausto. Queria ir para casa mas não vejo outra solução senão esperar a minha vez, ser observado por um profissional e regressar a casa com a consciência do que tenho. Da forma como fiquei rapidamente afetado, receio poder contaminar outros, no trabalho, nos transportes públicos.

— Didier Ferreira,

sou eu,

— gabinete cinco.

Caminho a custo. Culpo-me repetidamente pela minha tamanha inconsequência. Sabia bem o que fazer. Evitar os lugares onde a mulher adoentada pusera as mãos. Em rigor, só tinha de sair da carruagem com precaução. Mas não. Duas estações depois, nem mais do que dois ou três minutos, apressei-me a levantar, acondicionar a mochila nas costas sem deixar cair “O Doido e a Morte”, sair da carruagem no meio do aglomerado de pessoas junto da porta. Saí como pude, como sempre, apressado. E quando dei por mim já estava no exterior da estação a caminhar com a unha do dedo anelar da mão direita entre os dentes.

Ai, este vício de roer!


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

Metropolitano: aqui, no Brasil, falamos a sua forma reduzida, metrô

hora de ponta: horário de pico.

carruagem: vagão.

telemóvel: smartphone, celular.

calcam: exercer compressão; apertar, comprimir.

ecrã: tela.

Urgências: pronto-socorro.

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples


DIDIER FERREIRA (@didier.ferreira) é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos).

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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