Depois da tempestade, uma decantação necessária
O colunista Horácio Toco Coutinho traz reflexões sobre um SXSW 2025 que revela um futuro do trabalho moldado por tecnologia, mas sustentado por vínculos, escuta e saúde mental

Faz algumas semanas que voltei do SXSW 2025 (South by Southwest), um dos eventos mais influentes do mundo quando se trata de tendências, inovação e cultura. Não por falta de inspiração, mas justamente o contrário, demorei a escrever porque preferi deixar tudo assentar. Revisitei anotações, reli alguns artigos que passaram batidos no calor do evento e, sobretudo, precisei de tempo para refletir com profundidade.
Eu não sabia até chegar em Austin, mas o SXSW não é só um festival de ideias — é um vendaval. E depois da ventania, o que mais precisamos é decantar.
O que ficou? O que ainda pulsa em mim dias depois?
Talvez a primeira constatação seja essa: vivemos um momento em que dois assuntos dominam o mundo. Um deles você já imagina: inteligência artificial. O outro, talvez você até sinta, mas ainda não nomeou com clareza: saúde mental.
Esses dois temas atravessaram não só as grandes talks do evento, mas também as conversas nos corredores, os cafés compartilhados e os silêncios cúmplices diante de tantas perguntas sem respostas.
O trabalho como conhecíamos virou um esboço
A sensação é de que o futuro do trabalho não está mais no horizonte — ele está em constante atualização no presente. E, no meio dessa transição, surgem perguntas que ninguém sabe exatamente como responder.
Como vamos trabalhar daqui a cinco anos? Que tipo de relações queremos construir nos ambientes de trabalho? O que é produtividade em um mundo onde a máquina é mais rápida que a mente?
Não faltaram painéis falando sobre “quiet quitting”, propósito, a reinvenção dos escritórios e a necessidade de ambientes híbridos mais saudáveis. O que me tocou, no entanto, foi algo mais sutil: a ideia de que a nova liderança precisa ser profundamente humana.
O líder que inspira hoje não é o que sabe tudo, mas o que escuta bem. O que tem empatia, que sabe colocar o outro em perspectiva. Que constrói confiança e, principalmente, segurança psicológica.
Sim, a tecnologia está redesenhando o trabalho, mas a cultura é quem está escrevendo esse novo manual de instruções. E o que nos torna humanos está, curiosamente, se tornando o principal diferencial competitivo frente à inteligência artificial.
Inteligência artificial: entre a urgência e o delírio
Não dá para negar o impacto: a IA está moldando o presente com uma velocidade que desafia nossa capacidade de processar. Ferramentas que automatizam tarefas, criam conteúdos, tomam decisões e até fazem arte. O fascínio é inevitável.
Mas, olhando com mais cuidado, percebo que há dois movimentos acontecendo ao mesmo tempo: de um lado, a implementação acelerada de soluções reais, com ganhos inquestionáveis em eficiência e produtividade. Do outro, uma avalanche de apostas, promessas e achismos.
Há um certo ruído entre o que “já é” e o que “ainda não é”. E aí mora o perigo: em um mundo tão encantado com a tecnologia, corremos o risco de delegar até aquilo que nos constitui. Criatividade, julgamento ético, sensibilidade, compaixão. Coisas que ainda não cabem em código e talvez nunca caibam.
O SXSW, com toda sua grandiosidade tecnológica, também foi um espelho. E o que esse espelho mostrou é que estamos fascinados, sim, mas também inseguros. Porque toda vez que nos aproximamos demais do que é técnico, somos desafiados a lembrar do que é humano.
Saúde mental: a urgência silenciosa
E é aí que entra o segundo grande tema, o que mais me mobilizou internamente: saúde mental. Nunca se falou tanto sobre burnout, solidão, ansiedade, esgotamento emocional. Mas o que me impressiona não é o volume de conteúdo, e sim a sensação de urgência que começa a ganhar corpo.
Ou nos reconectamos com a nossa humanidade, capacidade de comunicação profunda, com a arte de construir vínculos verdadeiros, disciplina emocional necessária para cultivar resiliência, empatia e otimismo ou estamos fadados a cair em uma espiral de isolamento.
O paradoxo é cruel: nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão solitários.
E no mundo do trabalho, isso é ainda mais evidente. Se não formos capazes de criar ambientes onde a saúde mental seja prioridade (não só discurso), corremos o risco de adoecer como indivíduos e como sociedade. Ou aprendemos a cuidar uns dos outros, ou viramos apenas peças eficientes numa engrenagem que se move rápido demais para notar quando alguém quebra.
O diferencial humano
No meio de tantos insights, números, tendências e teorias, uma ideia se cristalizou em mim: o nosso único diferencial competitivo frente à inteligência artificial é justamente aquilo que não pode ser programado.
É a pausa.
É o abraço.
É a escuta que acolhe sem tentar consertar.
É o olhar que diz “estou aqui”.
É o silêncio confortável entre pessoas que se respeitam.
É a vulnerabilidade de quem erra e aprende.
Se não soubermos cultivar isso, a IA vai nos atropelar. Porque a máquina não cansa. Mas ela também não ama, não sonha, não sofre, não se reconstrói depois de uma dor. Nós, sim.
A reinvenção começa agora
O futuro do trabalho não será só sobre onde trabalhamos ou quantas horas. Será, acima de tudo, sobre como queremos viver enquanto trabalhamos. E isso é uma escolha ética, afetiva e existencial.
Voltei do SXSW com essa certeza: tecnologia é caminho, não destino. E a saúde mental é o mapa que pode nos levar até lá sem perder a alma no meio do trajeto. É por isso que demorei para escrever.
Porque não queria só relatar o que vi — queria entender o que senti.
E, agora que entendi, posso dizer com clareza: o futuro é híbrido, veloz e incerto. Mas, se soubermos cuidar uns dos outros, ele ainda pode ser profundamente humano.
E talvez essa seja a mais revolucionária de todas as inovações.
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