Crianças nos fazem sentir
Tudo na nossa sociedade utilitarista e imediatista nos leva pra longe de nós mesmos. Nesse contexto, entendemos que o que mais importa é o que está do nosso lado de fora
Tudo na nossa sociedade utilitarista e imediatista nos leva pra longe de nós mesmos. Nesse contexto, entendemos que o que mais importa é o que está do nosso lado de fora: nossa imagem, nossa identidade construída em cima de títulos, marcas, resultados, likes. Quantificáveis, é o que esperam que sejamos. E nós, sedentos de pertencimento, seguimos nos quantificando, nos cobrando produtividade, imagem e resultados superestimados.
Só que não é o quantificável e nem o tangível que nos preenche intimamente, que nos faz vivos por dentro, pelo contrário, eles têm potencial de nos esvaziar de nós mesmos. Não é o que conquistamos, é muito mais o quanto nossas conquistas refletem nossa personalidade e nossa integridade. Não é o que possuímos, mas o que estamos substituindo pelo possuir. Não é a profissão, o casamento, o diploma: é como vivemos e para que vivemos tudo isso.
Nossa bússola interna, nosso mundo particular, nossa expressão autêntica que vem em forma de impressão digital – única – é basicamente desconhecida para muitos de nós. Se o que esperam de mim está do lado de fora, o lado de dentro fica em segundo plano. Minhas angústias, minhas indignações, minhas tristezas, medos e raivas serão tamponados, porque uma imagem quantificada precisa necessariamente ser positiva.
Nesse mundo utilitarista, não são só as emoções que ficam no caminho, mas também as pessoas que mais em contato com as emoções estão: as crianças. Elas se destacam negativamente de maneira dupla nesse mundo da produtividade, porque não só não produzem coisas, como produzem muitos afetos. Estão intimamente ligadas às suas próprias necessidades e emoções. Nos demandam com todas as suas forças, com todas as suas lágrimas, com todo seu corpo. As crianças, nesse contexto, não só atrapalham a conquista e o resultado dos adultos, mas trazem à tona tudo que está tamponado nestes.
Não é à toa que crianças estão sendo banidas dos espaços públicos, que são rechaçadas, que a violência contra elas é ampla e abertamente incentivada: crianças representam tudo que os adultos perderam. A capacidade de sentir, de amar incondicionalmente, de perdoar, de ser leve, autêntico e conectado consigo. Olhar pras crianças dói. Nos lembra da imagem falsa que construímos de nós mesmos. Nos lembra de tudo que não pudemos mais ser, de tudo que aceitamos sem questionar. Crianças nos fazem sentir. E deixar esse tampão ser aberto é dolorido. Muitos de nós preferem deixar como está e culpar a criança pelos nossos descontroles, pelos escapes de tudo que está guardado lá embaixo, bem enterrado.
O antídoto pra isso é a vontade de aprender com as crianças. Isso nos dá a chance de voltar a estar mais próximos de nós, do nosso eu mais autêntico. É se espelhar nelas, mesmo. Por que não chorar de medo ou pular de raiva? Por que não dar importância pros desejos e sonhos mais malucos e se deslumbrar com o simples e com o mundano? Por que não se permitir apenas ser, sem ter que mascarar tanto quem somos? Por que não pedir um abraço para alguém que nos conforte? Por que não encarar o medo da rejeição com mais verdade e vulnerabilidade? Por que não se jogar na vida com mais coragem e alegria
O retorno à nossa autenticidade pode ser potencializado quando nos permitimos apenas aprender com quem ainda não desaprendeu. Esse é o grande convite das crianças para nós.
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