Como o caos domina a nossa vida
A ordem e o caos — o feminino e o masculino, o dia e a noite, a novidade e a rotina, o positivo e o negativo — compõem a estrutura fundamental do mundo. E também vivem dentro de nós.
A ordem e o caos — a novidade e a rotina, o feminino e o masculino, o dia e a noite, o positivo e o negativo — compõem a estrutura fundamental do mundo. E também vivem dentro de nós.
Antes da pandemia, eu fiz um mini-sabático na Inglaterra. Foi uma aventura muito planejada e tudo estava perfeito. Tinha aulas no período da manhã, almoçava e depois caminhava tranquilamente até o centro. Escolhia um lugar charmoso, sentava, pedia um café, abria o laptop e trabalhava toda a tarde. A partir das 17hs, começavam a aparecer as amigas. Tive a sorte de conhecer as três garotas mais maravilhosas daquele período — duas chinesas e uma japonesa — falávamos das nossas descobertas, da cultura inglesa, da nossa. Ríamos. Perto das 19hs, cada uma rumava à sua casa. No dia seguinte, tudo recomeçava.
Sentia uma satisfação e uma leveza incrível nessa rotina… até um dia. Depois do almoço, eu atravessava o grande parque que dividia o bairro residencial do centro, e tinha ainda a sobremesa na mão: uma maçã. De repente, senti um forte impacto, desequilibrei-me e quase caí no chão. Senti um ardor intenso. A primeira coisa que me veio a cabeça é que eu havia sido atingida por um grande objeto. Olhei à minha volta e não vi nada, nem ninguém — o parque estava deserto. Minha mão latejava e notei que já não tinha mais a maçã, mas tinha muito sangue.
Alarguei mais a vista e lá estava o objeto que me atingiu: uma gaivota. A ave marítima terminara de comer a minha maçã e agora me olhava fixamente. Passado o susto, eu continuava atônita: o caos estava instalado. O mar devia estar a mais de dois quilômetros, o que fazia uma gaivota no meio da cidade? Fui à farmácia, fiz o curativo e fui alertada sobre o perigo das famintas e agressivas gaivotas inglesas. Inclusive, o farmacêutico relatou acidentes graves com crianças.
Da ordem ao caos
Fiquei quatro dias escrevendo e teclando com dificuldade, condicionada pela lesão nos dedos. A sensação de ordem esvaiu-se. Constatei que as hitchcockeanas gaivotas estavam por toda parte e agora eu tinha medo. E esse pequeno caos na ordem que acreditava interrompeu o meu idílio inglês. E assim é a vida. Quando tudo parece na mais perfeita ordem, surge o caos, nos surpreende e abala todas as nossas certezas.
Na ordem construída e conquistada, emergem mudanças improváveis, perdas irreversíveis, acidentes. Do nada, surgem as injustiças — reais ou imaginárias. Somos vítimas de maquinações, somos abandonados por quem amamos, experimentamos o horror e a dor das nossas próprias limitações. O que fazer? Assimilamos os danos e recomeçamos o processo de resignificação. E esse processo serve para tudo.
Aqui, nesse caso específico, tive que rever o que eu acreditava e tinha como certo sobre as gaivotas. Ora, no Brasil, em Portugal e em vários outros países onde eu estive, as gaivotas são aves selvagens. Em Lisboa, o rio Tejo mistura-se com as águas do oceano Atlântico. É um rio de água salgada, portanto, repleto de gaivotas. Vi muitas vezes, nas aulas de remo, as gaivotas pescando. Aves marinhas, as gaivotas visualizam os peixes que nadam mais à superfície e, num voo rasante e preciso, mergulham e capturam o peixe. Elas só estão em terra quando o seu habitat — o mar — é invadido pelo caos — a tempestade. Há um ditado em Portugal que diz “gaivotas em terra, tempestade no mar”. E eis que tive que assimilar uma nova ordem: na Inglaterra, as gaivotas não pescam, estão em plena cidade, em parques públicos e gostam de maçãs. E não só: comem de tudo, de chocolate a comida processada.
O caos faz parte
Esse incidente foi um acaso, um azar? Não. Se não fosse esse, seria outro. O caos e a ordem é a estrutura fundamental da vida. Essa alternância está em tudo. Há dia e noite, feminino e masculino, positivo e negativo, bem e mal, a novidade e a rotina, o conhecido e o desconhecido. Diz-se ainda que fugindo de um, caminhamos em direção ao outro. Mas não é verdade. Esses dois opostos não estão dispostos em uma linha reta, como trajetórias opostas. Esse e outros dualismos da vida estão entrelaçados, como mostra a sabedoria oriental, representados pelo símbolo yin-yang. A ordem tem dentro dela o caos e o caos leva dentro de si, a ordem. O bem está dentro do mal. E o mal carrega em si o bem.
Mas é preciso observar com atenção o símbolo oriental para notar essa sutileza. O grafismo mostra duas serpentes que se tocam e se ajustam, uma branca e outra preta. Essa é a imagem que todos retêm do símbolo. Mas, fixe bem o olhar e você verá que dentro da serpente branca tem um ponto preto. E na serpente preta tem um ponto branco. Também sabemos disso. Afinal já temos a experiência de que é da nossa maior fonte de felicidade que também vem a nossa maior dor.
Caos e ordem em nós
E não é apenas no mundo, essa dualidade está dentro de nós. Não existe o bem que está dentro de nós e mal que está fora — como o demônio considerado por algumas religiões. O mal atravessa o coração humano. E não ficamos apenas pelas metáforas e pelo caráter abstrato do que sentimos. A nossa própria estrutura física — os dois hemisférios do cérebro — reflete essa dualidade.
Muitas confusões na nossa cabeça começam a fazer sentido quando compreendemos isso conscientemente. Passamos a tolerar melhor os nossos planos frustrados, os nossos sonhos despedaçados e as coisas menos boas que nos acontecem. A vida se torna menos penosa quando aceitamos essa alternância — e às vezes até esperamos por ela. Quem nunca vivenciou com intensidade uma experiência porque intuiu que ela não duraria? Quem nunca conheceu a máxima elevação dos sentidos porque sabia que aquele seria o último beijo, o último abraço.
Lucidez
Porém, nem tudo são más notícias. É preciso se dizer que o caos também não permanece. E é a partir dele que emerge a ordem. O poeta Ovídio, na obra Metamorfoses, conta que a vida — e todas as coisas maravilhosas que emanam dela — surgiu do caos. Para o bem viver, não podemos perder isso de vista essa impermanência — tanto do caos quanto da ordem. Além de trazer mais sabedoria para a vida, evita o desgaste de combates inúteis, as revoltas sem sentido e, principalmente, a escolha de soluções definitivas para problemas temporários. Saber que tudo pode mudar completamente no minuto seguinte, após uma única gota, um único passo, uma única frase. Ter consciência dessa alternância faz-nos caminhar com mais lucidez pelos nossos dias.
Por isso, viva cada fase com a força que elas merecem. Procure manter a leveza e a serenidade durante o caos. Encare crises e dores como uma antessala da ordem. E, enquanto persistir a ordem, desfrute-a. Reconheça, valorize e viva todas as suas dimensões. Não deixe as suas roupas favoritas para ocasiões especiais. Todos os dias, leve à mesa o seu melhor talher, as taças de cristais. Agarre-se à ordem com todas as sua forças. Intensifique o abraço e o beijo que acontecem na ordem, antes que o caos apareça. Não deixe o melhor para o fim. Coma a sobremesa primeiro!
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e mestre em filosofia. Mora em Portugal há 18 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login