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Coisa de estrada
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Algumas situações do trajeto marcam nossos corações até mais do que o próprio destino.

O carro desacelarava e assim eu podia erguer os olhos e contemplar aquele tigre lá de pé, com talvez cinco metros de altura, passando pela janela. Ele ficava logo na entrada da ponte Rio-Niterói. O baita bicho era só uma estátua pregada no trajeto, num posto de gasolina, quando viajávamos em família até Minas Gerais cortando o Rio de Janeiro. Mas na minha cabeça era outra coisa. Pra mim, ele era o guardião da entrada da maior ponte do Brasil – assim como se fosse o Colosso de Rodes guardando o acesso à Ilha de Rodes na Grécia Antiga. Atravessar a ponte “que demorava pra acabar” era um instante dos mais esperados no curso das nossas viagens de infância.

Algumas situações se repetem nos percursos habituais que fazemos. Às vezes nos marcam até mais do que o próprio destino.

Quase todo verão, às 5 da madrugada, nosso ônibus passava silencioso pela orla sem ondas da cidade fluminense de Araruama. E toda vez eu me perguntava, sonolenta, por que é que os veranistas dali não continuavam até Cabo Frio como a gente. Lá tinha ondas! Como é que se divertiam um verão inteiro numa praia sem nem marola? Todo ano a mesma coisa: Araruama continuava sem onda – portanto, incompreensível pra mim até o fim da minha infância. Mais velha, cheguei a torcer para não estar dormindo naquele instante da viagem. Araruama era bonita de se ver.

TRAVESSIAS

Quando a gente ficava no sul, a viagem era para Guaratuba, uma praia onde só se chegava atravessando de balsa uma baía frequentada por golfinhos. Qual não foi minha surpresa ao descobrir, um dia, a existência de um caminho secundário que driblava a baía? Mas que sem graça… Viagens, como eu já disse, são portais de transformação, e tomar um atalho, pra mim, significava recusar a mágica que acontece durante as travessias.

No vaivém entre o Sul e o Sudeste, duas vezes por ano cruzávamos São Paulo pela Marginal do Tietê. De cotovelo apoiado no banco de um Cometa, eu segurava meu queixo na palma da mão, hipnotizada pelo trecho pontilhado por sedes de empresas famosas. Só voltava a dormir após avistar o velho edifício sisudo com uma árvore verde no telhado. Dali, da então maior editora da América Latina, saía quase tudo o que eu costumava ler. Sonhava entrar lá. Minha sorte seria outra. São Paulo seguiria apenas como lugar de passagem. E a marginal, só mais um panorama reprisado a cada viagem. Coisa de estrada e ponto.

ALGUMAS COISAS NÃO MUDAM

As paradas de apoio ao viajante a gente adorava. O motorista vinha desacelerando e desviava sobre o piso trepidante de paralelepípedos do estacionamento do posto Buenos Aires. O ônibus chacoalhava. A turma acordava e achava aquilo uma amolação. Ouviam-se resmungos. Maletas caíam nas nossas cabeças. Uma xícara gigante pregada num pedestal nos recebia na entrada, enquanto no hall dos banheiros uma deusa Afrodite aparecia pintada num mural de azulejos. A gente corria serelepe para comer um pão com bife cujo nível de gostosura vivia sujeito à sorte do dia. No fim, gostando ou não, a gente comia rindo e jurando escolher outra coisa na próxima vez. Mas ano após ano continuava fazendo igual. Tem lances no trajeto que nos seduzem até mais do que o próprio destino, não é?

Também se repetiam como paisagem na janela os cenários de um Brasil menos colorido. Aceleradas, lá se iam casas pobres – às vezes na beirada das vias rápidas sem nem uma calçada. Qual era a história delas? Alguns barracos montados embaixo dos viadutos… A bagunça urbana dos subúrbios. E a gente de passagem… Imagens insistentes que muitas vezes nos forçaram a olhar além dos limites do nosso mundinho, mostrando que a vida já não era igual pra todo mundo. Algumas situações do trajeto nos ensinaram e nos marcaram até mais do que o próprio destino.


JULIANA REIS é uma viajante de coração inquieto em  busca de histórias, pessoas, lugares e experiências  que a modifiquem. Escreve mensalmente na edição impressa de Vida Simples

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