Cidades precisam de crianças com menos medo e mais escuta
A infância é uma fase da vida que traz bagagens para sempre. É por isso que é tão importante a atenção não só dentro de casa, mas fora dela também – o mundo precisa ser um lugar melhor para todos
Como se sente um menino quando diz “Não gosto do helicóptero porque ele atira e as pessoas morrem”? Esse é apenas um trecho de uma das 1500 cartas enviadas à justiça, nos últimos dias, pelas crianças que moram na favela da Maré – uma das regiões de conflito entre polícia e traficantes, no Rio de Janeiro. Quando lá no texto de estreia comentei que uma cidade que pensa nas crianças é boa para todos disse isso de maneira muito consciente para que a gente comece a refletir.
A infância é uma fase da vida que traz bagagens para sempre. É por isso que é tão importante a atenção não só dentro de casa, mas fora dela também. Se entendemos que grandes decisões impactam diretamente na saúde mental de quem vive os primeiros anos de vida, temos meio caminho andado para tornar o mundo um lugar melhor para todos. Quando falo em grandes decisões, aponto o olhar nas políticas públicas não só para infância. Por quê?
Crises econômicas, desemprego, o trabalho infantil, a falta de esperança, as violências, a falta de estrutura nas escolas e nos hospitais, o risco de perder a casa, as guerras, a fome, a ausência de lazer e cultura… Tudo isso e mais um pouco se reflete no cotidiano das crianças. Elas, que com o passar dos anos vão descobrindo como o mundo real funciona, vêm tendo esses processos acelerados, em que o lúdico é quase ou totalmente inexistente. Realidades nuas e cruas são apresentadas muito cedo tornando natural a violência e a ausência de dignidade.
Como se viver em sociedade significasse não ter direitos respeitados. Há quem pense que elas devem sim perceber que a “realidade é dura” e que “estejam preparadas para o pior porque o mundo é assim”… Evidências mostram que essas não são as melhores maneiras de apresentar a realidade. Pode até parecer contraditório, mas é justamente na fantasia, no lúdico, no espaço de leveza, que as crianças encontram compreensão das inúmeras possibilidades de resolver problema. É nesse mundo mágico e sem preocupações com o real, que elas constroem suas próprias ferramentas para transformar a prática. Quem não encontra lugar para isso, dificilmente se sentirá seguro e receptivo às adversidades do mundo e do outro.
São tantos os problemas hoje que pouco se dá prioridade em ouvir a opinião das crianças com relação ao que vivem. Ter o medo como companheiro tem feito parte do existir nas infâncias. Não só nas grandes cidades. As crianças do campo, da floresta, as que vivem em regiões de conflito, as que tentam migrar, são muitas as realidades e faces de tensão nesses futuros adultos. O medo real não é o mesmo sentido em uma história no livro infantil, nos desenhos animados ou em uma brincadeira. As sensações de riscos tiram das crianças a esperança e o encantamento tão necessários para uma vida de alegrias no presente e no futuro.
Um caminho potente para a sociedade pode estar na escuta sensível. Não apenas nas falas das crianças, que já são riquíssimas fontes de inspiração, mas na observação dos gestos, brincadeiras, expressões plásticas e musicais, comportamentos e até doenças: tudo pode ser reflexos das realidades em que vivem. Como adultos reeducamos o olhar e encontramos novos canais de compreensão sobre uma infância melhor.
Neste momento de escuta precisamos estar inteiros, presentes e conectados para aprender com suas narrativas. Trata-se de olhar cada criança respeitando sua individualidade e estar aberto para acolher o que elas expressam naturalmente sem julgamento. Aqui no Brasil, não tenho dúvidas de que, se além de todos os direitos da criança defendidos pela constituição, incluíssemos a oportunidade da escuta nas decisões políticas, teríamos um país melhor. Da Maré, cartas das crianças somaram à sensibilização nas decisões de um plano de redução de danos durante as operações policiais realizada. Precisamos de mais iniciativas assim para transformar a realidade pelo olhar das crianças.
Luísa Alves é relações públicas e criadora da plataforma Guia Fora da Casinha, na qual compartilha conteúdo sobre infância e mater-paternidade na cidade, além de agenda cultural pra quem tem crianças em São Paulo. Nesta coluna, quinzenalmente, traz reflexões sobre cidadania, cultura e lazer na infância, fortalecimento de mães e sobre o estilo de vida com crianças. Seu instagram é @guiaforadacasinha
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