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Bico doce: o feio mais bonito que conheci
IStock
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Dentro os grandes feitos da comunicação é trazer beleza para aqueles que falam de maneira encantadora”.

Em meados dos anos 1980 tive uma aluna chamada Romana. Era uma advogada brilhante, simpática e muito comunicativa. Em todas as aulas, invariavelmente, tinha uma história curiosa para contar. Entretanto, embora seus casos perambulassem por todos os temas, o que ela mais gostava era de falar das causas que defendia. Dessa forma, ao descrever as reações dos clientes, dos adversários e dos juízes, dava a impressão de que estava na própria sala do tribunal. Os colegas adoravam seus relatos.

Certa vez contou que estava cuidando de parte do inventário de Guilherme de Almeida. Todos nós nos surpreendemos, e vários perguntaram ao mesmo tempo: Guilherme de Almeida, o poeta? Ela se divertiu com a reação da turma. Segundo ela, embora fosse muito conhecido pelas poesias, assim como Leonardo da Vinci, podia ser chamado de “homem dos sete instrumentos”.

Mil ofícios

Só para dar ideia, além de poeta, foi jornalista, ensaísta, tradutor, crítico de cinema, advogado e heraldista. Assim, sua produção literária o levou a ocupar a cadeira número 15 da Academia Brasileira de Letras. Sobretudo, também teve o mérito de ser coroado como o quarto “Príncipe dos poetas brasileiros”, depois de Bilac, Alberto de Oliveira e Olegário Mariano.

Por fim, Romana falava do poeta com desenvoltura. Conhecia tudo sobre a vida dele. Depois de algum tempo matando a curiosidade dos colegas de classe, ela me disse: tenho uma surpresa para você, Polito. E me entregou um papel com o timbre do seu escritório de advocacia. Nele estava escrito:

beleza na comunicação

Crédito: IStock

“São Paulo, 26/05/87

Ao meu querido mestre amigo Polito, com o meu abraço. Romana. As anotações, os grifos, etc. são de Guilherme de Almeida (o poeta). Deve ter estudado bastante”.

E, junto com a carta, um livro intitulado “El arte de hablar bien”, de Paul C. Jagot y J. G. Noguin. O livro em si não possuía grandes atrativos. Era uma segunda edição, de 1943, publicada por Joaquim Gil – Editor – Buenos Aires. Ocorre que a obra estava mesmo toda grifada a lápis pelo poeta. Uma relíquia! Um livro de oratória, arte para a qual dediquei a minha vida inteira, que havia pertencido a Guilherme de Almeida, e assinalado com sua própria letra!

Beleza física

Mandei fazer uma encadernação em couro, preservando a capa original. E passei a pesquisar os trechos destacados por Guilherme de Almeida. Antes de tudo, daria para escrever um livro só fazendo a análise dos itens marcados. Um dos parágrafos que mais me chamou a atenção dizia: “Os piores defeitos físicos perdem muito do seu caráter repulsivo naqueles que falam de maneira encantadora”. Essa era uma questão que merecia uma análise mais detalhada. Será que a boa comunicação pode atenuar a falta de beleza física?

Vinícius de Moraes, por exemplo, não comungava da opinião dos autores do livro. Tanto que dizia: “as feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Não sei se o poetinha pensava mesmo assim, porém, sem ser um modelo de beleza, viveu sempre rodeado de lindas mulheres. Sem contar, também, que Edmond Rostand nos presenteou com Cyrano de Bergerac, que, apesar de feio, conquistava a todos com seu jeito de falar.

comunicação

Crédito: Chris Lawton | Unsplash

Bico doce

Assim, busquei na memória alguém que pudesse confirmar a teoria destacada por Guilherme de Almeida. E me veio à lembrança um rapaz que conheci lá no interior de São Paulo. O garoto era feio: baixo, magrinho, narigudo, cabelos espetados como um espanador. Estava quase sempre com a mesma roupa, calça jeans e camiseta branca. Ninguém o perceberia numa multidão.

Filho de família remediada financeiramente, andava o tempo todo sem dinheiro. Esse rapaz possuía, entretanto, uma qualidade admirável: conversava com desenvoltura e muita simpatia. Chegava a ser sedutor pela maneira como se expressava. Tanto assim que ganhou o apelido de Bico Doce.

Fluência e naturalidade

Modelo perfeito da afirmação assinalada pelo poeta, Bico Doce era uma criatura encantadora. Primeiramente, sua conversa se desenvolvia com fluência e naturalidade. Assim, a presença de espírito se mostrava pronta e inteligente. Falava com voz sonora, bem timbrada e ritmo agradável. Excelente contador de histórias, sempre tinha uma na manga para alegrar a turma. Brincava com suas próprias características físicas sem nenhum constrangimento. Sorria sem esforço.

Não me lembro de ter visto o Bico Doce sozinho uma única vez. Estava sempre acompanhado de meninas muito bonitas. A turma sentia até uma ponta de inveja dele. A pergunta era recorrente: o que será que essa gata vê num cara desengonçado como o Bico Doce? Todos queriam tê-lo por perto. Iluminava os ambientes que frequentava.

Depois que mudei para a Capital nunca mais vi o Bico Doce. Soube que estava trabalhando como diretor comercial de uma grande empresa. Contudo, seu jeito comunicativo e envolvente jamais me saiu do pensamento. Aprendi com aquele menino franzino que nada pode ser mais poderoso na convivência social que a habilidade de falar bem.


REINALDO POLITO é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é “Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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