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Andar de ônibus pode ser uma aventura amarga ou prazerosa
Matheus Farias
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Na cidade de São Paulo tudo é superlativo. A começar pela população. 12 milhões de habitantes e, se abrirmos um pouco os braços para a Grande São Paulo, já pula para 22 milhões. Quando um estrangeiro chega aqui pela primeira vez, fica impressionado com o que vê já do avião. A maioria não imagina que haja tantos edifícios aglomerados. Que seja uma metrópole tão movimentada. Que exista tanta gente perambulando pelas ruas.

Até os próprios habitantes ficam surpresos com certos números. Nem todos sabem, por exemplo, que há cerca de 15 mil ônibus circulando pela cidade. E que esses coletivos transportam por volta de nove milhões de passageiros por ano. Com o crescimento populacional, esses dados são atualizados com rápida frequência.

Citei especificamente os ônibus e a cidade de São Paulo porque foi nesse contexto que a minha história de vida se enredou. Esses coletivos acompanham a minha existência desde criança. Na verdade, até mesmo antes de eu nascer, já que meu pai, quando namorava a minha mãe, um bom tempo trabalhou como motorista transportando passageiros de Araraquara até as cidades próximas.

Trajetória familiar

Bem, o que ele dirigia não eram ônibus, mas sim o que chamavam de jardineira. Ah, e quando se casaram ele ainda desenvolvia essa atividade. Calculo, portanto, ter sido concebido em um dos momentos de descanso de suas viagens diárias.

Essa foi a pré-história. A história para valer teve início quando eu tinha nove anos de idade. Nessa época, em 27 de dezembro de 1959, começaram a circular os ônibus elétricos em Araraquara. Durante a primeira semana todos podiam usar aquele meio de transporte sem pagar. Com idade tão tenra, entretanto, ainda dava para passar por baixo da roleta do cobrador. Assim, por muito tempo continuei a me valer daquela grande novidade gratuitamente.

Era um prazer. Os horários o tempo todo cumpridos rigorosamente. Os motoristas, todos simpáticos, atenciosos e excelentes profissionais. Trabalhavam com uniformes impecáveis. Sentiam orgulho em desempenhar aquela função. Alguns deles eram nossos conhecidos. Em suas horas de folga, frequentavam a mesma praça e jogavam bola no mesmo campinho de terra batida.

E assim, por muitos anos, eu e a maioria da população da Morada do Sol íamos para todos os cantos da cidade com os trólebus, administrados pela CTA – Companhia Trólebus Araraquara.

Os primeiros trajetos de ônibus em São Paulo

Logo que me mudei para São Paulo, bem no comecinho dos anos 1970, ainda tentando encontrar um rumo profissional, só andava de ônibus. Aos poucos fui aprendendo quais eram os horários e os trajetos de cada um. Pela manhã, para ir ao trabalho, precisava tomar dois coletivos. O primeiro até que era mais ou menos tranquilo. O segundo, todavia, era difícil, perigoso e desafiante.

Todos os dias, invariavelmente, eu ia pendurado na porta. Só depois de uns quarteirões é que as primeiras pessoas desciam e sobrava espaço para entrar com o corpo todo. Andava abarrotado, mas sempre no horário. Eu começava a trabalhar às 8h. Ele chegava no ponto onde eu descia exatamente às 7h55. Por isso, não podia vacilar. Assim que ele parava, eu já estava na porta para começar a correr.

Do ponto até a empresa o tempo era de quatro minutos. Ou seja, chegava com um minuto de antecedência. De vez em quando não dava. Como o regime da companhia era extremamente rigoroso, se atrasasse apenas um minuto era preciso preencher uma ficha explicando o motivo de não ter chegado no horário. Só assim abonavam a falta.

Para fazer esse trajeto com antecedência, teria de levantar muito mais cedo. Como saía tarde da faculdade à noite, dormia poucas horas. Qualquer minuto adicional de sono ajudava muito. Andava tão cansado que em certas ocasiões adormeci e só acordei quando já estava no ponto final.

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Perrengues financeiros

À tarde, tomava outro ônibus para ira à faculdade. A grana era curta, contadinha. Por esse motivo, para economizar, o meu jantar era pão com banana. Eu comia lá no fundo para não incomodar os outros passageiros com o cheiro da fruta. Terminada a aula, cansado, querendo uma cama para dormir, eu tomava o último ônibus do dia. Até hoje sinto o cheiro de diesel. Nunca mais me escapou à lembrança.

O sacrifício era tão grande que prometi a mim mesmo: no dia em que eu tiver condição de comprar um carro, não piso mais num ônibus.

Promessa feita, promessa cumprida. Comprei o carrinho e nunca mais quis saber de andar de ônibus. Quando passava por eles, e via alguém dormindo com a cabeça encostada no vidro, não acreditava que tinha enfrentado esse perrengue por tanto tempo. Não eram boas recordações.

Sempre me entristeci ao ver as enormes filas nos pontos, especialmente quando chove. Aquelas pessoas cansadas de um dia intenso de trabalho, com fome, sabendo que vão chegar em casa quase na hora de levantar novamente. Como me disse certa vez o saudoso deputado Sólon Borges dos Reis: para atuar na atividade privada é só preciso ter competência.

Nas funções públicas, como representante do povo, além da competência é necessário ter também espírito público. Deve ficar sensibilizado ao passar por um ponto de ônibus e ver aquelas pessoas sofrendo para sobreviver e dar sustento à família.

A volta do ônibus

O tempo passou. Com essas reviravoltas da vida, fui trabalhar em um banco no centro velho de São Paulo. Éramos quatro gerentes. Todos eles, sem exceção, usavam os ônibus para visitar os clientes. Assim, quebrei a minha promessa e passei a acompanhá-los. Para minha surpresa, gostei. Era muito mais rápido que pegar o carro no estacionamento e procurar um lugar próximo do destino para parar. Tive de reaprender os trajetos. É como se tivesse tendo aquela experiência pela primeira vez.

Concluí que o problema não eram os ônibus, mas sim a vida dura que eu levava naqueles primeiros tempos na cidade grande. Depois, mais bem empregado, sem atropelos, em condições de optar se queria ou não usar aquele meio de transporte, os novos momentos até que se tornaram bastante prazerosos. Sem contar a companhia dos amigos que eram muito divertidos e amáveis.

Até algumas das minhas viagens para o interior passei a fazer de ônibus. Reclinava o banco, me ajeitava de forma bem confortável, pegava um livro, e quando me dava conta já estava chegando no destino.

E para aqueles que só veem os ônibus de longe, saibam que hoje alguns deles possuem ar condicionado, sistema de Wifi e até aparelhos de TV. Os tempos são outros.

Nesse vaivém no tempo, aprendi assim que comer pão com banana, andar de ônibus, pendurado ou não na porta, dormir poucas horas serão experiências amargas ou alegres dependendo do estado de espírito, do momento e das circunstâncias em que vivemos. Se pensarmos bem, assim é tudo na vida. O que vale mesmo é o propósito que temos, é o sentido que damos às experiências, é a nossa proposta pessoal e inabalável para sermos felizes.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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